No âmbito do assassino programa da troika, que visa a destruição do Sistema Nacional de Saúde (SNS), o governo PSD/CDS anunciou um corte brutal nas horas extraordinárias dos médicos em 2012. Trata-se de uma classe que, embora privilegiada em termos remuneratórios em relação ao resto da população, tem um nível de exigência altíssimo, é bastante especializada e cuja profissão implica muitas horas de trabalho.
Os médicos têm 12 horas extraordinárias por semana obrigatórias, até um limite de 100 por ano, e em muitos casos estas chegam a representar 50% do ordenado.
SIM com mais uma entrada de leão e saída de sendeiro
O Sindicato Independente dos Médicos (SIM), dominado por PS e PSD, conhecido por nos anos 90 ter sugerido a luta sui generis de greve self service, onde cada um decidiria fazer greve quando quisesse, prometeu em Dezembro de 2011 uma greve às horas extraordinárias.
Esta entrada de leão morreu rapidamente quando o Governo declarou a greve como ilegal, lembrando que os médicos, abrangidos pelo Regime Especial da Função Pública, são obrigados a fazer horas extraordinárias nos limites já estabelecidos.
O SIM retirou a greve e mais não fez. Nunca os médicos foram mobilizados, nunca foram convocados plenários, nem um cartaz foi colocado, nem um panfleto distribuído.
O silêncio da FNAM e a organização pela base
A Federação Nacional dos Médicos (FNAM), sindicato dominado pelo PCP, mas cujo presidente apresentou o programa de saúde do governo Sócrates II, manteve a sua atitude expectante, intervalada com comunicados no seu site.
Entretanto, a classe médica, atacada como nunca, organiza-se. O grupo “Médicos Unidos”, criado no Facebook, junta rapidamente 7000 médicos de todo o país, que começam a trocar ideias pela Internet e rapidamente conseguem uma reunião com os Sindicatos e a Ordem dos Médicos, de onde sai quase apenas a promessa de negociações.
Mas a base não se contenta com a promessa de negociações e parte para medidas combativas. Em vários hospitais, fazem-se plenários de médicos, e em Santa Maria um plenário de Internos (os médicos mais novos, muitas vezes os “campeões” de horas extraordinárias, chegando a fazer turnos de 30 horas com óbvio prejuízo da sua saúde e do doente) junta cerca de 85 médicos (terão passado cerca de 100 durante todo o plenário) e unanimemente decide entregar minutas com recusa de horas extraordinárias para lá das 100 anuais.
Para se ter noção da força desta medida, muitos internos cumpririam 96 (!) horas extraordinárias só em Janeiro, o que os excluiria da escala de urgência já em Fevereiro. Apesar de ser o maior hospital do país, as urgências de Santa Maria são sobretudo asseguradas pelos internos, dado que a idade média dos médicos é muito elevada e também por razões hierárquicas. Ou seja, em Fevereiro, haveria o risco de vários serviços por todo o país não terem urgência, tendo havido vários serviços que entregaram escalas em branco.
Todos estes plenários foram convocados por médicos de base, sindicalizados ou não. A FNAM disponibilizou no seu site o modelo de minutas que todos os médicos vieram a assinar. No entanto, a divulgação da maior parte (todos?) dos plenários e a mobilização dos mesmos nunca foi feita por dirigentes sindicais. A FNAM continuou a negociar calmamente com o governo, sem nunca auscultar a classe sobre os seus desejos, sem perguntar ou sugerir formas de luta.
Entretanto, em Santa Maria, num universo de cerca de 300 internos da especialidade, rapidamente foram entregues quase 200 recusas de horas extraordinárias. Enquanto a FNAM negociava…a base agia!
Governo recua, e as mobilizações?
A 1 de Fevereiro, ou seja, no primeiro dia do mês onde há o risco de urgências não terem internos, o governo recua e anuncia que as horas serão pagas como até agora, e que a medida se aplica também a enfermeiros.
Rapidamente chovem mails e telefonemas de administrações para que seja comunicado a todos os médicos que assinaram as minutas que as horas serão pagas como em Dezembro de 2011.
No entanto, várias questões continuam em cima da mesa: a contratação coletiva, as carreiras, o descanso compensatório a seguir a uma urgência que o governo quer retirar. A vitória pode ter dado à classe médica a perceção clássica de que “quem luta não ganha sempre, mas quem não luta nunca ganha” e pode ter mostrado que a combatividade e a união são o caminho. É importante que novas mobilizações se comecem a desenhar.
Lições de uma luta
A luta dos médicos tem especificidades muito próprias: trata-se de uma classe com vários privilégios, sem desemprego.
No entanto, há vários pontos importantes em que importa refletir:
1. O ataque ao SNS ainda agora começou e implica uma resposta unificada, não só de médicos, mas também de enfermeiros, auxiliares, técnicos e sobretudo utentes do SNS. O SNS é uma conquista popular, que é importante defender e que é pedra basal numa sociedade justa. É importante que todos os trabalhadores e utentes do SNS lutem não só pelos postos de trabalho e salários no SNS, mas também contra as taxas moderadoras, o aumento do preço dos medicamentos, etc.
2. A organização pela base, com plenários participados e democráticos é a via para os trabalhadores conseguirem formas de luta combativas e em que, consequentemente, mais trabalhadores participarão ativamente.
3. Os sindicatos foram novamente ultrapassados pelos trabalhadores, e enquanto se embrenharam quase que exclusivamente em negociações estéreis com o Governo (que duram há anos!), foi a decisão de entrega de minutas por parte de um grande número de médicos por todo o país que encostou o governo à parede. Sem conciliações. Por muito que agora tanto SIM e FNAM venham tentar cavalgar a vitória, os médicos que participaram nos plenários e na luta sabem que precisam de se organizar sem esperar pela burocracia sindical. E foram as formas de luta combativas – e não as negociações ou os pareceres – que trouxeram uma vitória. Dos sindicatos ficou sobretudo a imagem da falta de comparência.
4. Apesar de todas estas especificidades, é preciso que todos os trabalhadores e desempregados atacados pela troika vejam na união de classe, no combate sem tréguas contra o governo, nos modos de luta democráticos, o caminho para mudarem de vida. Esta vitória mostrou que não há inevitabilidades e que, quando confrontado, o governo também recua.
N.M. (Interno)