Gisèle Pelicot, mulher de cerca de 70 anos que durante quase uma década, foi sistematicamente drogada e violada pelo seu marido, bem como por dezenas de homens recrutados pelo mesmo. Tudo isto foi documentado pelo próprio. Um dos episódios mais sombrios de abuso e violência sexual em França.
Durante anos, Gisèle experienciou sintomas estranhos: perda de memória, quedas de cabelo e emagrecimento inexplicável. Amigos e familiares suspeitaram de Alzheimer mas a verdade era bem mais devastadora: o marido estava a colocar comprimidos soníferos na comida e nas bebidas, deixando-a num estado de inconsciência total.
Nas palavras da vítima, “a sociedade machista banaliza a violação”. Infelizmente, é bem verdade. Continuamos a viver numa sociedade bastante machista e patriarcal. São ainda necessárias muitas e profundas mudanças na sociedade, como uma profunda reflexão para evitar que algo tão abominável volte a acontecer.
Tudo isto parece inacreditável. Tudo isto é chocante. Como é que isto é possível? Todos os avanços na proteção dos direitos das mulheres e de vítimas sexuais tremem. Não são de todo suficientes. Todo este caso acendeu novo debate em França, não só sobre as estruturas judicias como sobre a sociedade francesa. As definições legais de violação estão mais uma vez sob escrutínio, com feministas e ativistas a pressionarem para que a lei seja reformulada. A proposta sugere que a definição de violação deve incluir explicitamente a falta de consentimento, mesmo em casos onde a vítima esteja num estado de incapacidade de julgar ou recusar, como aconteceu com Gisèle. O Código Penal francês define atualmente a violação como “qualquer ato de penetração sexual, de qualquer natureza, ou qualquer ato oral-genital cometido (…) por meio de violência, coação, ameaça ou surpresa”, uma definição que não inclui o consentimento da vítima.
Incompreensível que a questão do consentimento não esteja incluída nesta lei. Só entre 2017 e 2021, o Ministério do Interior francês estima que o número de violações ou tentativas de violação registadas em França duplicou, passando de 16.900 para 34.300. Milhares de pessoas saíram às ruas para denunciarem a lassidão da justiça e a ineficácia da polícia em investigar casos de violação contra mulheres. Extremamente censurável também foram as palavras do presidente do Tribunal Penal de Vaucluse no julgamento contra Dominique Pélicot e outros 50 homens, que optou por falar em “cenas de sexo”, em vez de “violação”. É urgente mudar a forma como esta sociedade machista encara a violação.
Após a detenção do marido de Gisèle, a polícia encontrou um verdadeiro arquivo digital de horror: mais de 20 mil vídeos e fotografias, organizados em pastas datadas e etiquetadas sob o nome “abuso”. Este caso choca pela brutalidade, mas também pela abrangência dos envolvidos. A investigação identificou 83 suspeitos, dos quais 50 foram formalmente acusados. Entre eles, homens de todas as esferas da sociedade: motoristas de camiões, guardas prisionais, enfermeiros e até um jornalista local.
O marido de Gisèle foi condenado a 20 anos de prisão, a pena máxima, por crimes sexuais contra a ex-mulher e foi considerado culpado de todas as acusações relacionadas com a violação agravada. Foi também considerado culpado pela tentativa de violação de Cillia, a mulher de um dos co-arguidos, e de ter recolhido imagens íntimas e sem consentimento da filha, Caroline, e das noras, Aurore e Céline. Para os outros arguidos, as várias penas de prisão variam entre os três e os 13 anos. Na reflexão e nas mudanças necessárias a fazer, o sistema judicial também está incluído. É preciso acabar com a impunidade de abusadores sexuais e violadores.
De acordo com as regras em França, Giséle poderia ter evitado que o julgamento fosse público e ter optado por mantê-lo à porta fechada. Mas decidiu que era importante que toda a França ouvisse a sua história. Era importante fazer com que a vergonha recaísse sobre os homens acusados, e não sobre ela. “Assim, quando outras mulheres acordarem sem memória, poderão recordar o [meu] testemunho”, afirmou. Gisèle deu a cara por todas as vítimas de abusos sexuais, pelos seus três filhos e pelos seus netos. Por todas. Obrigada Gisèle. Obrigada pela tua coragem. O teu testemunho será eterno nesta luta pelos direitos das mulheres! O MAS está completamente empenhado com a luta das mulheres contra a violência sobre as mulheres e pela defesa intransigente dos seus direitos.
Mexeu com uma, mexeu com todas.
Pelo fim da cultura de violação.
Pelo fim da impunidades dos agressores.
Pelo fim da sociedade machista.