Urgência no SNS

ENTREVISTA A ANDRÉ TRAÇA, MÉDICO E ACTIVISTA EM DEFESA DO SNS

Ruptura: André, sucintamente quais são as razões estruturais para que nos últimos 10 a 20 anos tudo esteja pior no SNS?

André Traça (AT): Em resposta à primeira pergunta, estas razões prendem-se em primeiro lugar com um importante desinvestimento no orçamento público para a saúde. Desinvestimento esse, em que o seu período mais negro foi nos anos da troika, altura em que a verba que era dotada à saúde chegou a ser inferior à verba que era dotada para o serviço da dívida pública e os custos de gestão da mesma. Isto reflectiu-se tanto na dotação como na manutenção de recursos materiais, tanto como da própria organização e disposição desses mesmos recursos mas, sobretudo, e aqui o ponto principal, prende-se com o desinvestimento na própria força de trabalho, quer ao nível das carreiras, quer ao nível dos próprios salários assistindo-se, no caso de alguns grupos profissionais, a perdas de salário no equivalente do poder de compra que, no caso dos médicos para dar um exemplo, se contarmos com as atualizações salariais feitas no início deste ano, mesmo assim estamos com salários médios no equivalente poder de compra 16% inferiores àqueles que eram praticados em 2011, isto para não falar de muitos outros grupos profissionais. A par disto, houve um investimento muito grande de capital nacional mas sobretudo estrangeiro dos principais grupos privados de saúde em Portugal. Dois: Lusíadas Saúde e a Luz Saúde, antigo Espírito Santo Saúde são essencialmente detidos e controlados por capital estrangeiro e sobra a José de Mello Saúde, dona do grupo CUF. Todos eles investiram massivamente no crescimento desta área de negócio, com a construção e aquisição de hospitais e clínicas e também oferecendo condições competitivas para recrutar profissionais que viam nesta deslocação um atrativo para fugir à degradação das condições vividas no SNS. Estes atrativos deram-se não só a nível de política salarial, em muitos casos, nem tanto a política salarial mas sobretudo em termos de horários de trabalho e conciliação da vida pessoal com a profissional que, em muitos casos no SNS, se tornou extremamente penosa. Para além disto, para além de ter passado a ser mais ou menos comum e normativo considerar um empregador privado, também passou a ser a imigração como solução para responder a aspirações financeiras, familiares e mesmo de crescimento técnico e profissional. O que sobra é um SNS destituído, um SNS que, em muitos casos, infelizmente, já constitui ou que já se normalizou como recurso de segunda linha para quem tem poder de compra para adquirir um seguro de saúde.

Ruptura: como se explica que quer governe o PS, a geringonça ou governos PSD/CDS, tudo fica igual ou pior, agora com 5, 8 e já chegou em agosto a 13 urgências fechadas num só fim de semana?

AT: Essencialmente, pelas razões estruturais explicadas no ponto anterior com algumas nuances.

Enquanto aquilo que nós assistimos com os governos do PS e da geringonça foi muito, de forma muito tímida, caminhar no sentido de repor alguns dos direitos e algumas das perdas salariais da Troika, não houve de facto uma vontade política que se traduzisse num acertar do passo e num compensar do tempo perdido, e isso é patente, tanto ao nível dos próprios grupos profissionais, como mesmo da oferta de serviços.

Com os governos da direita, em vez de assistirmos a uma marcha lenta ou uma estagnação, aquilo que nós assistimos é mesmo uma marcha atrás violenta, habitualmente naquilo que é a preservação e o cuidado com os pilares fundamentais do SNS, com políticas que vão no sentido de privatizar, direta e indiretamente, os recursos do SNS, através de várias formas de terceirização, das quais se destacam a questão das parcerias público privadas, encerramento de unidades hospitalares, de valências e clínicas e alguns atos de gestão política que se podem considerar danosos, não é? Como foram alguns dos movimentos deste curto até agora mandato da Ministra Ana Paula Martins de autoritarismo e completa prepotência, com saneamentos políticos. Veja-se se no caso do INEM e do antigo diretor executivo do SNS, sem acautelar o trabalho desenvolvido, e o trabalho que era necessário desenvolver, nomeadamente no que respeita à questão do plano de verão.

Ruptura: qual a alternativa ou alternativas a este estado de coisas no SNS (que não seja emigrar)?

AT: A pandemia veio demonstrar aquilo que nós já prevíamos que é que, no fundo, só um SNS é que é capaz de dar resposta a determinados picos de procura, a situações que flutuam naturalmente nessa mesma procura e a necessidades de uma população mais doente, mais envelhecida e que sofrerá toda uma série pressões decorrentes da crise climática, que vão precisamente impactar na sua saúde.

Enquanto um privado pode decidir fechar portas quando atinge um limite de capacidade, ou quando prevê que prestar algum serviço não lhe será lucrativo, o SNS tem que esticar até onde for necessário. Isto ficou muito patente na forma como durante a pandemia os privados necessitaram de terceirizar eles mesmos muitos dos cuidados que estavam comprometidos a prestar para próprio SNS.

O SNS precisa de se refundar em termos de princípios de qualidade e de segurança que oferece nas suas várias valências, enquanto serviço público, universal, solidário e gratuito.

É necessário um plano de investimento para a saúde, onde caiba a adoção de estratégias de investimento estrutural e tecnológico.

É necessário que o SNS se reoriente sobretudo para uma medicina de proximidade, de prevenção e fundada nos cuidados de saúde primários, retirando a necessidade às pessoas de recorrerem a cuidados hospitalares, nomeadamente às urgências, que são inadequados para uma série de necessidades pontuais, por não terem outro tipo de alternativa.

A nível de emprego e de salários, é necessário acabar com muita da precariedade que foi grassando e foi crescendo ao longo dos últimos 10 anos, sendo necessário que os vínculos se deem por meio de contratação efetiva, baseados em concursos públicos, acautelando horários de trabalho condignos, com recurso a horas extraordinárias na medida do estritamente necessário, e portanto o extraordinário, e não da forma corrente e corriqueira a que temos assistido.

É necessária uma atualização justa dos salários, e uma renegociação das carreiras compatível com o momento em que estamos, e é necessário que os próprios profissionais sejam mandatados para a gestão democrática e participativa das unidades onde trabalham, substituindo a atual nomeação, muitas vezes com viés político das administrações, por formas de gestão intermédia eleitas a partir da base ou escolhidas por via de concurso público.

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