Têm sido registadas diversas denúncias de assédio sexual e moral nas nossas instituições de ensino. Porém, verificou-se uma clara discrepância entre a quantidade de casos admitidos em inquéritos anónimos e as denúncias efetivamente apresentadas (sendo estas praticamente inexistentes). Na verdade, são inúmeros os casos que terminam em pena suspensa ou que sofrem atenuantes. Quando se trata de crimes sexuais contra as mulheres, verifica-se um padrão: procuram-se desculpas esfarrapadas para tolerar o comportamento dos arguidos, como, por exemplo, a “roupa interior demasiado provocante da mulher” ou “havia um ambiente de sedução mútua”, mesmo nos casos em que vítima se encontrava comprovadamente inconsciente.
Segundo a PORDATA, em 2020 foram cometidos 2434 crimes de violência sexual em Portugal, cujas vítimas são maioritariamente as mulheres. De acordo com um relatório da Polícia Judiciária, entre 2014 e 2019 foram assassinadas, em Portugal, 316 mulheres, das quais 205 fora do contexto das relações de intimidade. Entre 2015 e 2019, 98% dos violadores eram homens, sendo que 91% das vítimas eram mulheres.
Um inspetor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) está a ser investigado por suspeita de ter abusado sexualmente de uma mulher brasileira de 35 anos no aeroporto de Lisboa. Neste momento, o caso encontra-se a ser investigado em segredo de justiça. Independentemente da resolução do mesmo, esta denúncia poderá espelhar a opressão acrescida que a mulher racializada efetivamente sofre, visto que a violência de género se une à violência do racismo. De facto, em Portugal, a mulher brasileira sofre diversos entraves: o seu corpo é hipersexualizado, é diariamente abordada com comentários preconceituosos e apresenta uma dificuldade maior em encontrar emprego e habitação com condições dignas e acessíveis.
No nosso país, o Código de Trabalho proíbe o assédio no local de trabalho, sancionando a sua prática com uma “contraordenação muito grave, sem prejuízo da eventual responsabilidade penal prevista nos termos da lei” (cfr. n.º 5 do artigo 29.º do CT). Na categoria de ‘coação sexual’ só menciona “constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar um ato sexual de revelo”, não abrangendo toda uma série de ações e comportamentos igualmente graves (situações de manipulação e chantagem associadas a promessas de obtenção de emprego, humilhação psicológica e exclusão social, etc.).
A escassez das queixas formais replica-se, também, neste contexto. Justifica-se pelo medo de represálias que a vítima apresenta, incrementado, muitas vezes, pela sua situação de precariedade e pela dificuldade em comprovar o assédio: são necessárias testemunhas e os tribunais nem sempre validam as provas apresentadas. Como é óbvio, numa situação de estagnação salarial, inflação galopante e aumento da precariedade, muitas mulheres da classe trabalhadora sofrem em silêncio.
A violência de género está enraizada nos mais variados contextos da sociedade e da vida quotidiana da mulher. No caso das jovens e das mulheres trabalhadoras, à situação de violência e opressão machista acrescenta-se a violência da exploração e da pobreza, a violência da inflação e dos baixos e estagnados salários, a violência da impunidade do agressor e da ineficácia das instituições formais de apoio (polícia e estabelecimentos de saúde), que são elementos centrais para entender as dificuldades maiores destas mulheres, seja no abandono dos episódios e/ou ciclos de violência, seja na procura de apoio para recomeçarem uma vida autónoma e mais salutar.
De acordo com uma análise de dados de prevalência da Organização Mundial de Saúde, entre 2000-2018, 1 em cada 3 (30%) das mulheres sofreu agressões físicas e/ou sexuais ao longo da vida. A violência na intimidade (praticada por um parceiro) é a forma de violência contra as mulheres mais prevalente em termos mundiais (afetando cerca de 641 milhões de mulheres). Além disso, 6% das mulheres declararam ter sido agredidas sexualmente por outra pessoa que não um parceiro.
Contudo, a verdadeira prevalência desta forma de violência sexual é provavelmente muito maior, considerando fatores como o estigma, a dificuldade em encontrar apoio de qualidade e a impunidade do agressor. A maioria das vítimas de tráfico sexual (92%) são mulheres. Pelo menos 200 milhões de mulheres e raparigas, com idades entre os 15-49 anos, sofreram mutilação genital feminina, em 31 países. Na UE, entre 30 a 50% das mulheres são vítimas de assédio sexual no seu local de trabalho.
Igualmente gritante é a escassez da procura de apoio: menos de 40% das mulheres que são vítimas de violência sexual o fazem. Na maioria dos países com dados disponíveis, as mulheres recorrem maioritariamente à família e aos amigos e pouquíssimas recorrem a instituições formais de apoio. Menos de 10% das pessoas que procuraram ajuda se dirigiram à polícia. No que diz respeito à legislação, mesmo quando existem leis que protejam os direitos das vítimas, isto não significa que estas sejam suficientes, estejam em conformidade com as normas e as recomendações ou que sejam, de facto, implementadas e aplicadas.
Lamentavelmente, os números gritantes de violência, a ineficácia das prestações de auxílio e a impunidade da entidade agressora não são ocorrências pontuais e aleatórias, fazem parte de um padrão constante e característico do sistema em que vivemos. Por estas e por outras razões, exigimos:
- O fim da impunidade para os agressores machistas e racistas.
- O fim dos entraves às queixas-crime de importunação sexual.
- A criação de secretarias próprias para a apresentação de denúncias de violência sexual.
- O alargamento da rede de casas abrigo e do apoio à inserção laboral das vítimas de violência sexual.
- A existência de gabinetes de apoio à denúncia do assédio moral e sexual, nas universidades e locais de trabalho.
- A formação de equipas especializadas no tratamento e apoio jurídico às vítimas.