Mulher corta o cabelo num protesto no Irão

“Mulheres, vida, liberdade”: Mulheres iranianas disparam o gatilho da revolta do povo iraniano

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Desde o dia 16 de Setembro que o povo iraniano está em protesto, por todo o país, devido à morte de Mahsa Amini, , uma jovem curda de 22 anos que foi detida pela polícia religiosa do Irão (Gasht-e Ershad), pelo “uso impróprio” do hijab (véu islâmico). Mahsa foi detida pela Patrulha de Orientação em Teerão, a dia 13 e, algumas horas depois, encontrava-se numa cama da unidade de cuidados intensivos do Hospital Kasra. Três dias depois, a sua morte foi anunciada. A polícia afirma que a morte decorreu das consequências de um ataque cardíaco, enquanto a clínica que a recebeu comunicou, pelo Instagram, que ela já estava em morte cerebral quando foi admitida. Verificaram-se múltiplos testemunhos de violência e tortura de pessoas presentes e outras mulheres detidas na instituição de “reeducação”. Adicionalmente, um ataque hacker resultou na libertação nas redes sociais dos exames realizados a Mahsa Amini e a comunidade online pôde verificar que a jovem tinha sofrido de hemorragia cerebral devido a graves traumatismos e fraturas.

As palavras de ordem destes protestos têm sido “mulheres, vida, liberdade” e “morte ao ditador”, visando Ali Khamenei, líder supremo do país. As mulheres têm queimado os seus hijabs em protesto, andando de cabelo descoberto e cortando o cabelo em público. Estes protestos são acompanhados de uma resposta feroz por parte do governo, tendo já sido mortas mais de 50 pessoas, com milhares de detenções e abusos policiais às mulheres detidas, havendo também relatos do uso de munições reais contra os protestantes. O regime do presidente Ebrahim Raisi bloqueou todo o acesso às redes sociais e internet no país, numa tentativa de abafar o fogo da revolta popular, bem como de tentar acalmar as pressões externas sobre o Irão, chegando mesmo a convocar os embaixadores do Reino Unido e da Noruega. Este Sábado, o presidente prometeu apertar as medidas contra a população em protesto. Entretanto, a solidariedade internacional alastra-se através de manifestações em vários países.

Este conjunto de protestos parece estar a tomar a maior dimensão de qualquer protesto relacionado com os direitos das mulheres desde a Revolução iraniana em 1979 e já representa um dos maiores desafios ao regime dos últimos 10 anos – tanto devido ao número significativo de protestos ocorridos nas pequenas e nas grandes cidades, como à sua índole audaz, sendo o clima comparável ao dos protestos de 2019/2020, instigados pelos aumentos dos preços dos combustíveis, que resultaram em 1.500 mortos. Aqui chegados, torna-se importante refletir sobre a situação política do Irão, nomeadamente no que se refere às mulheres e à conduta de vestuário.

Desde 1953, quando se deu o golpe de estado apoiado pelos EUA, o Irão vivia sob o reinado de um governo ocidentalizado, no qual as elites viviam em considerável conforto, enquanto a população vivia miseravelmente, propiciando o descontentamento generalizado. Apesar de as mulheres terem sido um sustentáculo importante na ocorrência da Revolução Iraniana de 1979, quando se traçou o fim da ditadura do Xá, apoiada pelos EUA, que tantas injustiças sociais e económicas disseminou na vida da classe trabalhadora, das mulheres e das comunidades oprimidas (como o povo curdo, por exemplo), o descontentamento popular foi tomado pela fação islâmica, resultando no golpe de estado e instalação de um regime autoritário e ultraconservador de intensa opressão, em particular sobre as mulheres.

A burguesia liberal, aliada às organizações de esquerda, permitiu que Ayatollah Khomenei se tornasse o Líder Supremo do país, instaurando a República Islâmica e traindo o potencial da revolução. Em março de 1979, dezenas de milhares de pessoas manifestavam-se em Teerão contra as leis instituídas pela República Islâmica. A repressão foi uma ferramenta utilizada pela nova ditadura para liquidar os sonhos de libertação da classe trabalhadora e os direitos das mulheres. Daí em diante, o regime islâmico do Irão introduziu o código do vestuário para as mulheres. Para além disso, uma série de privatizações e as diversas sanções económicas providenciadas pelos EUA em 1979, 1987, 2006 e 2018 contribuíram para a carestia de vida e para a desigualdade social.

Em 1983, o código de vestuário foi introduzido no código penal, atribuindo uma sentença de 74 chicotadas a quem não utilize o hijab corretamente ou de todo (apesar de, na prática, várias mulheres serem sentenciadas a prisão prolongada), tendo em 2021 sido publicado um artigo que impõe 2 a 10 dias de prisão, bem como uma multa. A 5 de julho de 2022, a obrigatoriedade do uso do véu islâmico foi reforçada. No dia 12 de julho, pela primeira vez, foi decretado e celebrado o “Dia Nacional do Hijab e da Castidade”. No dia 15 de agosto, o presidente Ebrahim Raisi assinou um decreto que prevê punições mais severas para quem violar o código do vestuário, no espaço público ou nas redes sociais. Para além disso, as mulheres poderão ser privadas de determinados direitos sociais por um período de seis meses a um ano se partilharem fotografias sem o véu islâmico e as funcionárias públicas poderão ser demitidas do seu emprego se as suas redes sociais apresentarem fotografias consideradas “imodestas”.

Mais recentemente, o presidente anunciou também o uso de tecnologia de reconhecimento facial em transportes públicos para impor estas mesmas leis. A somar a este delírio, as mulheres poderão ser proibidas de entrar em bancos e administrações se não respeitarem as novas regras. Claramente, os direitos LGBTQIAP+ continuam a ser fortemente atacados no Irão: no dia 5 de setembro, duas ativistas foram condenadas à morte sob a acusação “corrupção na Terra”. O regime iraniano procura assim dar resposta às tendências liberais da geração jovem feminina iraniana, que já tinha provocado a criação da Patrulha de Orientação, a polícia moral do Irão, com o dever de repreender, deter ou “reeducar” mulheres que não respeitem a conduta de vestuário. Apesar de estas medidas terem a aprovação de apenas 15% da população, em 2020, o líder Ali Khamenei declarou que mulheres que não estivessem apropriadamente veladas deviam sentir-se inseguras.

Esta nova geração, oprimida por um colete cada vez mais apertado de costumes por parte do governo, abriu caminho para que estejamos agora a ver uma revolta pelo país inteiro, liderada pelas mulheres iranianas, extenuadas pelo regime opressor. As reivindicações que se têm ouvido nas ruas proferem o fim da ditadura, a eliminação da polícia religiosa e que a utilização do véu islâmico seja uma escolha individual. É importante ressaltar que estes e outros protestos transcendem o código do vestuário – tratam-se de exigências mais amplas, pela igualdade de género e pela justiça social e económica. Aliás, estes protestos não têm acontecido de forma exclusiva – são o espelhar de outros acontecimentos de anos anteriores. Por exemplo, em dezembro de 2017, igualmente por razões económicas, liberdades democráticas e melhores condições de vida, aconteceu uma série de protestos em diferentes cidades do país.

São variadas, também, as greves efetuadas por diferentes categorias de trabalhadores (setores da indústria petrolífera e do gás, das instalações petroquímicas, etc.). Tomemos como exemplo as greves dos profissionais da educação, ocorridas desde dezembro de 2021. Desta categoria de trabalhadores, pelo menos 60% são mulheres. As exigências que têm feito são diversas: fim do assédio laboral pelo “uso impróprio” do véu islâmico, construção de mais escolas nas zonas rurais, salário digno e igualdade salarial, fim das crescentes contratações precárias e temporárias, educação sexual e da igualdade de género, educação gratuita (devido à privatização deste direito, o mesmo “deixou de o ser” e apresenta custos para os alunos, contrariamente à própria Constituição Iraniana), apelo à liberdade dos presos políticos e solidariedade com as outras categorias de trabalhadores iranianos em greve. São reivindicações como estas que lapidam o significado de “mulher, vida, liberdade!”.

No entanto, a determinação e a capacidade de luta da classe trabalhadora e dos setores oprimidos da sociedade não se extinguirão nunca. Somente estes terão interesse e a capacidade para conquistar as suas liberdades democráticas, direitos, dignidade e autodeterminação. Apoiar a classe trabalhadora, as mulheres e as comunidades oprimidas iranianas nas suas exigências pelo fim da ditadura da República Islâmica e pelo fim da exploração do Irão por parte do imperialismo dos EUA é uma das nossas responsabilidades. O MAS solidariza-se com todas as mulheres e o conjunto do povo iraniano que se revolta contra o regime teocrático, autoritário e ultraconservador do Irão. Mahsa Amini, presente!

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