Destruição na Ucrânia

Três meses de invasão russa da Ucrânia: prepara-se a inflexão ocidental?

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No último mês, Putin foi forçado a recuar, concentrou as sua acções militares no Sul e Este da Ucrânia e conquistou Mariupol. No entanto, face à invasão em larga escala iniciada há 3 meses, a tomada de Mariupol parece ser insuficiente para que Putin proclame vitória. Tudo indica que as acções militares russas se irão manter, pelo menos, até que a Rússia conquiste alguma posição passível de ser considerada um avanço face à sua posição antes da invasão da Ucrânia. O mínimo poderá ser a conquista da região do Donbass e a sua ligação territorial à Crimeia ou poderá ir até à ocupação de todo o Sul ucraniano até à fronteira moldava, ligando o Donbass à Transnístria e sufocando o comércio externo ucraniano que é feito através do Mar Negro.

O controlo de boa parte do comércio externo ucraniano, nomeadamente, no que diz respeito aos cereais, parece ser, aliás, o mais recente trunfo da Rússia contra as sanções ocidentais. O ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros da Rússia exigiu na passada quarta-feira, 25 de Maio, o levantamento das sanções impostas a Moscovo, como condição para se evitar uma crise alimentar em algumas regiões do globo.

O mais recente trunfo de Putin

A Rússia aposta não só na perturbação das exportações ucranianas, nomeadamente, de cereais, através do bloqueio dos principais portos ucranianos do Mar Negro, como, sendo a Rússia o maior exportador mundial de trigo, ameaça com a suspensão das suas próprias exportações de cereais, contribuindo para precipitar uma possível crise alimentar em algumas regiões do globo, com o objectivo de pressionar ao levantamento das sanções ocidentais1.

O cenário piora se considerarmos que também a Índia, o segundo maior produtor mundial de trigo, anunciou a suspensão das suas exportações de trigo, defendendo as suas provisões face à baixa produção proveniente das extremas vagas de calor, ou se tivermos em conta os riscos de seca no Sul dos EUA e na Europa Ocidental.

Juntando-lhe a disrupção das cadeias logísticas mundiais, pela política chinesa de covid zero, já de si desordenadas por dois anos de pandemia, o resultado recai sobre o bolso de trabalhadores e juventude com um aumento do preço do trigo de 40%, desde o início da invasão russa da Ucrânia, batendo recordes históricos2.

Ao aumento dos preços dos produtos petrolíferos que já fez disparar o preço de todos os produtos e serviços, desvalorizando salários, junta-se o risco de uma crise alimentar em algumas regiões do planeta, com os consequentes elementos de instabilidade social. “A FAO já alertou que as perturbações na cadeia de abastecimento e logística na produção de cereais […] provocada pela invasão russa do território ucraniano vão ter importantes efeitos para a segurança alimentar mundial”3.

A ocidente, surgem os primeiros sinais contra a estratégia de encurralar a Rússia

Sem que as potências imperialistas ocidentais tenham interesse em intervir directamente no campo de batalha, os benefícios que já extraíram da guerra na Ucrânia são múltiplos, sobretudo para os EUA. Biden conseguiu que a UE adopte uma estratégia de independência energética face à Rússia, abrindo espaço à conquista americana de uma parte considerável do mercado europeu de hidrocarbonetos. A NATO e a UE reabilitam-se, conseguem fazer prevalecer os interesses da indústria do armamento, fortalecem os seus orçamentos de guerra e abrem possibilidades de expansão ao báltico (Suécia e Finlândia) e à Ucrânia. A “ajuda” financeira e militar que o Ocidente tem canalizado para a Ucrânia terá contrapartidas que significarão uma maior penetração dos interesses imperialistas ocidentais não só no país como em todo o Leste europeu. Tudo isto se junta ao isolamento económico e desgaste do aparelho militar russo, elemento fundamental da estratégia ocidental.

Aqui chegados e antes que a inflação ou a subida dos juros se transformem em convulsões sociais nos EUA e na Europa ou que a crise alimentar se materialize em rebeliões populares nas periferias do sistema capitalista, parece que começam a surgir as primeiras vozes a exigir uma inflexão na estratégia ocidental de confrontação e isolamento completo da Rússia.

De acordo com o editorial do The New York Times, de 19 de Maio4, Avril Haines, Diretora de Inteligência Nacional de Biden, “alertou recentemente o Comité das Forças Armadas do Senado [dos EUA] que os próximos meses podem ser instáveis. O conflito entre a Ucrânia e a Rússia pode assumir ‘uma trajectória mais imprevisível e de escalda militar’”. De acordo com este mesmo editorial, considerando que “os americanos foram galvanizados pelo sofrimento da Ucrânia, mas o apoio popular a uma guerra longe dos EUA não continuará indefinidamente” e que “a inflação é um assunto bem mais importante para os eleitores americanos que a Ucrânia e a disrupção dos mercados energéticos e alimentares mundiais está a intensificar-se”, surgem as primeiras vozes a exigir que “Biden deixe claro ao presidente Volodymyr Zelensky e ao seu povo de que há um limite para os EUA e a NATO confrontarem a Rússia, assim como há limites para o fornecimento de armas, dinheiro e apoio político” e que agora é tempo de deixar a Rússia definhar do “isolamento e das sanções económicas durante anos”.

No mesmo sentido, a 26 de Maio, no Fórum de Davos, onde se reúnem os principais líderes empresariais e políticos, assim como intelectuais, analistas e jornalistas, o antigo chefe da diplomacia dos EUA, Henry Kissinger5, tornou mundialmente audível aquilo que deve ser a inflexão da estratégia ocidental, apelando à sensatez dos ucranianos para admitir perdas de território e ao Ocidente para evitar uma derrota pesada de Moscovo.

Não sabemos até que ponto é que estas vozes representam, de facto, uma alteração de posição da Administração Biden ou até que ponto estão coordenadas com a própria Administração, mas não parece ser um acidente que a Diretora de Inteligência Nacional e um dos mais importantes antigos chefes da diplomacia dos EUA assumam publicamente posições contrárias à Administração sem que esta tenha intenções de o fazer. A verificar-se tais intenções, depois de 3 meses de euforia belicista contra a Rússia, que em nada contribuiu para qualquer processo de negociação, Biden e o Ocidente terão de fazer uma inflexão brusca para travar a escalada da guerra e o seu crescente envolvimento. Para evitar que essa inflexão seja vista como incoerente, é oportuno que a mudança comece a ser assumida por figuras importantes, mas não de imediato pelo Presidente dos EUA.

Portanto, alcançados importantes avanços geoestratégicos das potências imperialistas ocidentais, a Ucrânia começará a deixar de ser útil e a resistência do povo ucraniano poderá ficar entregue a si própria.

Guerra, inflação, sanções, crise alimentar e ambiental recai sobre os povos

Entretanto, é o conjunto dos povos ucraniano, russo e restantes povos mundiais que vão pagando as consequências mais pesadas deste conflito. Quanto mais subalterno o país, dentro do sistema capitalista, pior são as consequências que se abatem sobre os seus trabalhadores e juventude. Os ucranianos são obrigados a abandonar as suas vidas e a refugiar-se noutras paragens. A invasão da Ucrânia já provocou mais de 6 milhões de refugiados ucranianos e mais de 8 milhões de deslocados internos. Os russos sofrem as consequências das sanções económicas e os povos do resto do mundo assistem à desvalorização repentina do seu nível de vida.

Tanto do lado das potências ocidentais, como do lado russo, a situação política e social é marcada por uma profunda instabilidade e perda de condições de vida para a juventude e trabalhadores. O prolongamento da guerra aprofunda estes traços da situação política que atravessamos, podendo vir a desencadear importantes mobilizações, tanto nas principais potências ocidentais, como na Rússia. A mobilização da juventude e trabalhadores é o que as classes dominantes e governos, tanto na Rússia como no Ocidente, mais temem, daí pode assumir um papel tão importante para o acelerar do fim da guerra.

Sem mobilização popular contra a guerra continuamos à mercê da narrativa e dos interesses dos vários imperialismos em disputa. Após 3 meses de guerra, o MAS continua a exigir o seu fim imediato. Putin fora da Ucrânia. Não à escalada militar. Não à NATO. Ajuda à Ucrânia sem condições. Suspensão do pagamento da dívida pública ucraniana. Fim de todos os blocos militares. Toda a solidariedade com a resistência do povo ucraniano. Pela defesa do direito à soberania e autodeterminação do povo ucraniano.

1 https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/2022-05-20-Russia-vai-cortar-o-envio-de-cereais-para-o-ocidente-ate-que-acabem-as-sancoes-1fc81c50

2 https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/2022-05-17-Trigo-atinge-cotacao-recorde-depois-de-India-embargar-exportacoes-fdebdcae

3 https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/2022-05-20-Russia-vai-cortar-o-envio-de-cereais-para-o-ocidente-ate-que-acabem-as-sancoes-1fc81c50

4 https://www.nytimes.com/2022/05/19/opinion/america-ukraine-war-support.html

5 https://sicnoticias.pt/mundo/conflito-russia-ucrania/guerra-na-ucrania-o-conselho-que-chegou-dos-eua-e-irritou-o-presidente-zelensky/

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