Um olhar sobre a situação das IST

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No passado dia 10 de maio, o jornal Público publicou um artigo1 referente ao possível avanço de uma proposta já aprovada pela DGS de novos critérios de avaliação do cumprimento de metas para profissionais de saúde em Unidades de Saúde Familiar do modelo B. Esta proposta incluía nos seus indicadores a penalização de médicos de família com pacientes que interrompam voluntariamente a gravidez (IVG) ou contraiam uma infeção sexualmente transmissível (IST).

Esta notícia provocou uma reação geral do público e de diversos intervenientes políticos, tendo sido alvo de escrutínio na discussão relativa ao Orçamento do Estado por parte de múltiplos deputados, assim como surgiram diversas notas de repúdio por parte de organizações da saúde e do movimento feminista. Dois dias após a publicação do Público, a proposta foi retirada pelo grupo de trabalho responsável, em resposta ao mediatismo. O grupo de trabalho ainda assim manteve a sua posição de que os indicadores continuam a ser “bons” mas pediam desculpa pelas mulheres que se tivessem sentido ofendidas. Os indicadores foram assim substituídos por um índice de acompanhamento adequado em planeamento familiar2. Na prática, não é claro sobre o que incide este mesmo índice, podendo ser um fraseamento novo dos mesmos indicadores polémicos, acentuando a necessidade desta discussão e reivindicação ser continuada e acentuada.

Esta proposta provocaria uma obstrução insidiosa tanto à IVG como ao rastreio de IST, sendo que o primeiro caso foi o foco da maior parte da crítica publicitada. Tomamos agora também este momento para abordar a segunda problemática, que tanto sofre do estigma social associado à sexualidade.

As IST e o seu legado

As doenças sexualmente transmissíveis, ainda que no contexto atual não sejam tão referenciadas, são um problema insidioso com repercussões não só no âmbito da saúde, mas também no âmbito social.

Apesar da existência de infeções e doenças sexualmente transmissíveis desde sempre, o contexto dos anos 80 em particular é ainda premente. Apesar das múltiplas formas de contágio, a evolução epidemiológica do vírus HIV nos anos 80 foi particularmente associada a homossexuais do sexo masculino e à prostituição. Esta crise sanitária promoveu o uso de preservativos que tinham antes sido largamente inibidos pelas comunidades religiosas, alegando que não sendo completamente eficaz, em vez de utilizar o preservativo, o mais seguro seria evitar práticas promíscuas ou de infidelidade. Ainda vivemos a herança deste período, tendo acesso facilitado a preservativos no mercado e infelizmente também através do ainda existente tabu associado ao rastreio da SIDA, por muitos considerada como a “doença dos homossexuais”.

Estas associações são também prejudiciais à promoção de práticas sexuais seguras, uma vez que o uso de preservativos por um lado é um marcador indireto de promiscuidade na perceção social, e existem alguns constrangimentos à sua obtenção. Atualmente, é relativamente generalizado a utilização de pílulas contracetivas por substituto ao preservativo. Existem várias razões para isto se verificar: em primeira mão, o preservativo implica um custo financeiro, quando obtido externamente ao SNS. Fora desse contexto, a sua obtenção junto dos serviços de saúde é complicada, tanto por esta informação não ser largamente disponibilizada devido às insuficiências da educação sexual nas escolas e na restante população, bem como pelo requisito de apenas ser providenciado mediante uma consulta de planeamento familiar ou semelhante3.

Em Portugal, as consultas de planeamento familiar servem alegadamente dois propósitos: o planeamento e preparação da gravidez e da expansão da família junto da mulher ou do casal e o rastreio de IST4. No entanto, estas consultas não são acessíveis a pessoas do sexo masculino não acompanhadas, e não existe um protocolo explícito para a inclusão ou exclusão de mulheres e homens trans ou indivíduos não binários. Mesmo para as mulheres cis e hétero que procurem este aconselhamento e acompanhamento médico este processo pode ser moroso e dificultado, uma vez que se realiza através do médico de família nos centros de saúde, sujeitos a filas de espera infindas, não sendo uma questão de carácter urgente. Das pessoas inscritas nos centros de saúde (que não são todos os habitantes em território nacional) 10.8% não têm um médico de família atribuído5, sendo a maior parte deste grupo populacional residente na região de Lisboa e Vale do Tejo, com uma percentagem de 20.3% de pessoas sem médico de família. Isto significa que uma larga franja da nossa população nem tem os meios necessários para conseguir uma consulta de planeamento familiar, se souber que estas existem.

Olhando para a limitada informação existente, vemos que a incidência de IST tem vindo a aumentar, uma vez que passada as grandes crises a estas associadas vivemos num momento de acomodação do status quo. No mundo ocidental o contágio da IST tem vindo a aumentar6 7. Em Portugal a realidade parece ser a mesma8, com incidência particularmente grave na região de Lisboa, exatamente onde há as maiores falhas de resposta dos centros de saúde.

A recente polémica demonstra alguns problemas de narrativa social vigente. Desconstruindo os indicadores propostos, estes são marcadamente sexistas. A informação disponível, nomeadamente num estudo realizado pela Universidade do Porto9 aponta para um padrão do doente típico afetado por IST: homem, jovem e heterossexual. As diferenças encontradas são particularmente fortes (75.1% de homens para 24.9% de mulheres para sífilis, 66.1% para 33.9% para clamídia e 88.8% para 11.2% para gonorreia), nos casos sinalizados pelo SNS entre 2015 e 2019. Este estudo ainda incide sobre outras deficiências do SNS, sendo que apenas 22.4% dos contactos sexuais dos pacientes diagnosticados foram contactados pelas unidades de saúde respetivas.

O que é que isto implica?

Apesar das evidências demonstradas, a medida proposta incidia em particular sobre mulheres em idade fértil. Tendo em conta a realidade apresentada e o senso comum relativamente a uma medida que vai atuar em específico sobre a compensação monetária destes profissionais, o incentivo tende para reduzir os rastreios e não sinalizar e fazer o acompanhamento destes mesmo quando sejam detetados. Ao contrário do que se verificou nos anos 80, não estamos perante um surto que afete em particular um determinado grupo social, mas sim um julgamento moral que procura perpetuar falsos valores antiquados sobre a mulher.

A avaliação das Unidades de Saúde Familiar tem 6 áreas de intervenção10, sendo a única específica a género o acompanhamento da mulher em idade fértil, com idades compreendidas entre os 15 e 50 anos. É importante mais uma vez olhar para as evidências disponíveis: a incidência de doenças sexualmente transmissíveis no grupo etário dos 45 aos 64 é a mesma que para o grupo etário dos 15 aos 19, e apesar disso, esta penalização exclui as mulheres em idade mais avançada e indivíduos que não sejam mulheres cis.

Narrativa Social

Estamos assim perante um modelo de saúde que perpetua estereótipos de género que afetam todos os intervenientes, cujo acesso à saúde é limitado. Há aqui também uma perpetuação da visão da trindade feminina, como mãe, virgem ou meretriz. A mulher ativa sexualmente ou é mãe ou é promíscua e por isso alvo de estigma. A imagem mais fortemente associada às IST é a da prostituta, que é duramente estigmatizada. Só a figura da mulher está aqui diretamente impactada pelas suas práticas sexuais, sem haver uma preocupação com maior investimento na saúde sexual ou na educação sexual da população. Ainda de forma mais grave há uma insinuação do papel de máquina reprodutora da mulher infantilizada nestes valores.

Esta falta de investimento na educação sexual ou na facilidade de acesso a métodos de proteção coloca um maior ónus de proteção na mulher, que é pressionada socialmente a utilizar métodos hormonais para se proteger do embargo da gravidez. Este ónus é duplamente penalizador, não só porque estes métodos não são substitutos de preservativos e outros métodos de barreira que protegem de contágio de IST, como afastam o homem do dever consciente nestas práticas. Os métodos hormonais são ainda uma medicação com riscos associados, que para muitas pessoas não é adequada.

Todas estas linhas de análise de obstáculos e desincentivos agravam-se quando consideramos perspetivas interseccionais, de orientação sexual, de identidade de género, de raça, de estatuto de migração e de classe. Uma maior opressão e estigma dificulta sempre o acesso das populações à saúde e a tratamento digno. Um estatuto socioeconómico mais baixo reduz a capacidade de empoderamento sexual logo a partir do momento em que não têm a possibilidade de consultar um médico quando necessário, quando não podem dirigir-se a um ginecologista, quando não têm capacidade económica para adquirir estes métodos de proteção livremente. E nestas condições, a pressão recai sempre para quem tem a capacidade de engravidar, consequência muito mais saliente da relação sexual. Continuamos assim sem plataforma para alertar sobre os perigos de saúde reais das IST, que podiam ser evitados.

Da mesma forma que o acesso ao aborto tem permitido reduzir a prática do mesmo e aumentar a prática segura, o acesso a educação sexual e a serviços de saúde sexual melhoram a saúde de todos, em particular das pessoas em condições mais precárias que sofrem mais com a limitação deste acesso, reféns dos julgamentos morais abjetos.

Para o empoderamento feminino, melhor saúde pública e maior capacidade de melhorias gerais de qualidade de vida, é essencial que o Governo em vez de reformular indicadores de um sistema já frágil, invista diretamente em melhorar as infraestruturas de saúde, investir no sistema nacional de saúde, investir na contratação de profissionais de saúde e nas suas carreiras, e investir na expansão de serviços disponibilizados, para todos e sem preconceitos. Estes tipos de investimentos têm a capacidade de levar às mudanças necessárias, ao invés de mercantilizar os serviços de saúde e incitar a construção de uma hierarquia dentro das unidades de saúde, com base em metas não dependentes destes profissionais e dos recursos ao seu alcance.

Sofia Narciso, Mestre em Psicologia Social e Ativista

Referências:

1) https://www.publico.pt/2022/05/10/sociedade/noticia/medicos-familia-podem-penalizados-utentes-interromperam-voluntariamente-gravidez-2005548

2) https://www.saudemais.tv/noticia/39108-ivg-e-dst-deixam-de-ser-indicadores-de-avaliacao-dos-medicos-de-familia-grupo-de-trabalho

3) https://www.sns24.gov.pt/tema/doencas-infecciosas/vih/prevencao-da-infecao-por-vih/#sec-3

4) https://www.acm.gov.pt/ru/-/o-que-e-e-como-obter-uma-consulta-de-planeamento-familiar-

5) https://expresso.pt/sociedade/2022-01-13-mais-de-um-milhao-de-utentes-nao-tem-medico-de-familia-quase-70-vivem-na-regiao-de-lisboa

6) https://health.clevelandclinic.org/stds-on-the-rise-and-often-go-untreated-despite-being-curable/

7) https://www.healio.com/news/infectious-disease/20220301/stis-increasing-worldwide-study-finds

8) https://www.natgeo.pt/ciencia/2022/01/as-taxas-de-infecoes-sexualmente-transmissiveis-podem-estar-a-aumentar-durante-a-pandemia

9) https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31876867/

10 ) https://bicsp.min-saude.pt/pt/biblioteca/Documents/Anexos%20Relat%C3%B3rio%20Intercalar%20GAPS%20Mar%C3%A7o%202022/Anexo%20XVI%20-%20Proposta%20de%20atualiza%C3%A7%C3%A3o%20dos%20crit%C3%A9rios%20das%20atividades%20espec%C3%ADficas.pdf

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