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Aeroporto do Montijo: travar uma solução inimiga do ambiente

A declaração peremptória de Mário Lino ficou gravada para sempre no anedotário nacional. Estávamos em 2007 e para Mário Lino, a Margem Sul do Tejo era um “deserto”. Daí o “Alcochete Jamais!”.

Hoje, dez anos depois, estamos então de volta à Margem Sul, mas agora na Base Aérea Nº6 do Montijo. E, tal como há dez anos, o actual Governo PS parece continuar a acreditar que a Margem Sul é um deserto desprovido de uma população que será afectada pela existência, à porta de casa, de um novo aeroporto.

 

Impacto nas populações

Se em 2008, num relatório final de impacto ambiental, a APA e o próprio LNEC não tinham colocado objecções à construção de um aeroporto em Alcochete, hoje o caso é bem diferente. Existe uma forte oposição e mobilização da sociedade civil contra este projecto. Especialmente da parte das populações do Montijo, Barreiro, Seixal e Moita. Estamos a falar de dezenas de milhares de pessoas afectadas. As consequências de um aeroporto para a saúde das populações são conhecidas: ansiedade, irritação, perturbação do sono, da audição, do sistema imunitário, hipertensão, doenças cardíacas, depressão. Quem mora no Norte do Concelho de Lisboa ou já teve aulas na Cidade Universitária está familiarizado com o nível de poluição da actividade aeroportuária nas proximidades de um centro urbano. Olhando para a Península do Montijo, é chocante perceber a proximidade a que os aviões passarão por cima de casas, fábricas, escolas e hospitais. Mas não era precisamente este o problema do actual Aeroporto da Portela? Além da poluição sonora, as populações ficarão sujeitas à poluição atmosférica como a provocada pelas emissões das naves, nomeadamente ozono e fuligem e partículas ultrafinas que causam uma infinidade de doenças cardiorrespiratórias como asma, enfisemas, bronquites e mesmo cancro.

 

Impacto ambiental

Não serão apenas os humanos a serem afectados, pois o estuário do Tejo, classificado desde 1976 como Reserva Natural, é um dos mais importantes ecossistemas a nível mundial. Milhares de aves, de dezenas de espécies diferentes, fazem das águas do Tejo (e do Sado), dos seus sapais, mouchões e esteiros um ponto de passagem e nidificação nas suas migrações entre vários pontos da Europa e o continente africano. Para além dos flamingos, ibis pretas, cegonhas, colhereiros, e garças-reais, o estuário é também a casa de tantas espécies de peixes, crustáceos, anfíbios, golfinhos, moluscos, insectos e plantas tolerantes ao sal que aqui encontram, em muitos casos, a sua única casa, expulsos que foram dos seus ecossistemas originais pela agricultura intensiva. Trata-se de um ecossistema extremamente complexo que, dos microorganismos à avifauna, seria irremediavelmente abalado pela implantação dos aterros sobre o rio que a nova pista do aeroporto exige.

 

Segurança pública em risco

Mas o problema da existência de uma imensa fauna avícola não se coloca só do ponto de visa da preservação ambiental. É uma ideia absolutamente insensata a de colocar um aeroporto desta envergadura na mesma trajectória de voo de todas aquelas aves.

Já assistimos a este absoluto desprezo pela segurança das populações, em Portugal, no contexto daquilo que são, na prática, crimes ambientais: a extracção de areia em Entre-os-Rios, a “eucaliptização” da floresta portuguesa, a recente derrocada da pedreira em Borba, a contaminação nas minas em São Pedro da Cova, entre muitos outros. O Governo Costa já foi avisado, por pilotos e cientistas, de que construir um aeroporto num dos maiores pontos de nidificação da Europa é arriscar a vida das populações e dos que viajam. Mas os sucessivos Go­vernos PS e PSD/CDS-PP, ao longo das últimas décadas, têm sempre ignorado o coro de Cassandras que têm previsto tragédias humanas em resultado da negligência e cupidez de uns quantos.

 

Porquê o Montijo?

Essa negligência criminosa tem sido evidente no tortuoso e suspeito processo de avaliação ambiental que tem precedido a construção do aeroporto do Montijo. Em Fevereiro de 2017, a ANA, de­ti­da a 100% pela multinacional francesa Vinci, privatização do Governo PSD/CDS-PP, assinou um memorando de entendimento para aprofundamento do estudo do Montijo no âmbito da solução ­Portela+1. A ANA não tem qualquer interesse em fechar o Aeroporto da Portela, nem pode expandi-lo, pois este está, hoje, encurralado entre vários aglomerados urbanos devi­do ao adiamento sucessivo da sua expansão e à má gestão do território, marcas tanto do Estado Novo como dos Governos PS e PSD/CDS-PP. O Montijo tem sido, portanto, colocado pelo actual Governo PS como a única opção em cima da mesa e há uma série de razões que o podem explicar.

Sabendo que a UE proíbe a utilização de fundos do Orçamento do Estado para novos aeroportos e estando a ANA, contratualmente, obrigada a pagar a construção do novo aeroporto, o Montijo afigura-se uma solução mais barata que um novo e muito maior aeroporto, que permitisse desactivar a Portela. Além disso, a ANA é também accionista da Lusoponte e a “necessidade” de uma terceira travessia do Tejo, que servisse o aeroporto do Montijo, da qual esta seria concessionária, é sempre levantada quando se fala da solução Montijo+Portela. Para termos uma noção, a concessão das travessias sobre o Tejo é uma das mais ruinosas parcerias público-privadas, para o Estado, existentes em Portugal e o mais escabroso exemplo do rentismo privado que grassa no nosso país. Não é, pois, surpreendente que a ANA/Vinci queira o aeroporto do Montijo e, a ele associado, uma nova travessia sobre o Tejo, infraestrutura que o Estado português acabaria por financiar em grande parte, para depois conceder a sua exploração, a custos muito reduzidos, como sucedeu com a ponte Vasco da Gama.

Fica explicada a insistência na opção Portela+Montijo, assim como fica explicado que o Governo Costa a imponha como um imperativo nacional, o qual o Ministro do Planeamento e das Infraestruturas, antigo Vereador da Câmara do Montijo, Pedro Marques, refere que deveria prevalecer sobre as “medidas mitigadoras que um estudo de impacto ambiental viesse a impor”. Relembramos que um primeiro estudo de impacto ambiental foi chumbado por desconformidade pela Comissão de Avaliação da Agência Portuguesa do Ambiente, pois não mediu o impacto dos movimentos dos aviões nas aves do Tejo, assim como não fez uma avaliação do ruído com “o mínimo rigor exigível”.O ICNF afirma mesmo que não está demonstrada a viabilidade ambiental do projecto. O estudo afirma ainda que o impacto das aves sobre os aviões é reduzido, mas sem qualquer fundamento. Ficamos ainda sem saber qual o impacto dos aviões nas aves, esse sim relevante para o ambiente.

Qual é a empresa contratada pela ANA para proceder a tal estudo? A Profico, uma empresa que fornece projectos de engenharia civil, gestão de empreendimentos, fiscalização e consultoria e que, pelos vistos, nas horas vagas, também parece realizar estudos de impacto ambiental através de uma empresa, sua participada, chamada Profico Ambiente. Sendo que a ANA paga a esta empresa a realização de tal estudo e que esta mesma empresa tem outros interesses na área da construção civil, a sua imparcialidade é, no mínimo, discutível.

A própria ANA, reconhecendo que os resultados do estudo foram grotescos e que necessitavam de mais ponderação, acabou por pedir à APA que encerrasse o procedimento de avaliação ambiental, justificando este pedido “pela necessidade de aprofundamento do Estudo de Impacto Ambiental e a sua ressubmissão ao Governo”. Até ao momento em que este texto foi escrito, ainda nenhum outro estudo de impacto ambiental tinha sido submetido à apreciação da comissão de avaliação.

 

É preciso defender o ambiente dos interesses das elites que nos governam!

Um projecto desta natureza, desta envergadura e importância estratégica não pode ser apenas alvo de um estudo de impacto ambiental, pago e realizado por entidades privadas. O que várias associações ambientalistas têm exigido ao Governo Costa é a realização de uma avaliação ambiental estratégica, que permitiria avaliar várias possibilidades de locais para a construção de um novo aeroporto, tendo a conservação ambiental como primeiro critério da escolha da sua localização. Parece-nos uma proposta sensata.

Mas o caso do novo Aeroporto de Lisboa é sintomático dos males sistémicos das governações do PS/PSD/CDS-PP e da austeridade que nos tem sido imposta pelos ditames neoliberais da UE. Foi na venda a saldos de activos públicos, imposta pela Troika a Portugal, que a ANA foi arrebatada pela Vinci. É a UE, com a sua política de limitação ao investimento público e destruição do Estado, que nos leva a mais uma variante de parceria público-privada, cujo preço também inclui a saúde das nossas populações e a integridade do nosso património natural. Foi e continua a ser com a UE e desde os Governos Cavaco, que uma grande parte do território português entrou numa espiral de desertificação, em que o desmantelamento dos transportes públicos e/ou a sua privatização são causa e consequência. Estamos, hoje, reduzidos a uma estância balnear da Europa, dependentes do volátil turismo, principal motor da fraca recuperação económica do país.

É o país que os Governos PS e PSD/CDS-PP, seguindo à risca as ordens do neoliberalismo europeu, nos legaram: uma economia frágil, sustentada por trabalho precário, dos hospitais aos portos, das escolas aos transportes. Paira mesmo, sabemos, a ameaça da privatização de mais empresas de transportes públicos como a CP. Basta!

O Governo PS tem de envolver, no processo de decisão e estudo, as associações ambientalistas, especialistas ambientais, as populações, as associações de moradores e todas as pessoas afectadas pela cons­trução de um novo aeroporto. Em plena crise climática mundial, é necessária uma política coerente, uma estratégia nacional de promoção e recuperação dos transportes públicos em função da defesa ambiental, em função do combate à liberalização dos preços dos transportes e dos combustíveis e em função do combate à exorbitância de impostos sobre o consumo e o trabalho. Só será possível termos transportes ambientalmente sustentáveis se expulsarmos os interesses privados dos sectores estratégicos. Tal política inclui o investimento público e a renacionalização de todas as empresas de transportes colectivos e de energia, onde se inclui a ANA, tal como a Galp ou a EDP. É necessário reconverter a nossa economia e criar emprego em sectores ambientalmente sustentáveis. Sem meio-ambiente não haverá futuro!

 

Gonçalo Fonseca e Rafael Santos

Publicado na revista Ruptura nº154 de Janeiro, Fevereiro e Março 2019

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