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Os rios não podem servir de esgoto empresarial

Se os combustíveis fósseis têm estado no centro de múltiplos conflitos armados ao longo do Século XX e o início deste século, é hoje cada vez mais evidente que a água, esse recurso natural essencial à vida e cada vez mais escasso poderá ser, daqui para o futuro, cada vez mais disputada e, mais uma vez, o seu acesso marcará a distinção entre os que tudo podem, querem, mandam e po­luem e aqueles cujo capitalismo está apostado em descartar.

Portugal, por exemplo, tem assistido nos últimos anos, a mudanças ecológicas drásticas que nos revelam o novo mundo sobre o efeito das alterações climáticas. Qualquer alteração drástica num ecossistema provoca um efeito dominó: as alterações climáticas que originam secas, os solos exaustos pelas monoculturas impostas pela política agrícola comum, os leitos de rios secos, os cada vez mais frequentes fenómenos súbitos e devastadores como incêndios ciclópicos e tornados, a impermeabilização dos solos onde outrora havia reservas agrícolas e naturais são, simultaneamente, o resultado e a causa entre uns e outros.

Os recentes episódios de poluição maciça dos rios que correm em Portugal, nomeadamente os dois maiores, o Tejo e o Douro, evidenciam o drama que viveremos se continuarmos a permitir que o lucro e o interesse privado prevaleçam sobre o nosso direito a ter água com qualidade. É o nosso direito a beber, a cultivar, a pescar e a usufruir da natureza que está em causa.

Que fique claro: estes não são procedimentos ilícitos novos da indústria portuguesa. São sim uma prática sistematizada e permitida por quem nos governa há décadas. Todos nós nos lembramos do esgoto a céu aberto em que o Trancão e o Leça foram transformados, as ainda frequentes descargas das suiniculturas na Ribeira dos Milagres, a sempre actual conspurcação do rio Nabão. A longevidade destas práticas explica-se pela complacência criminosa, diremos mesmo, pela cumplicidade do sistema político para com as indústrias e explorações agrícolas que colocam o lucro à frente da possível boa qualidade de vida das populações.

Estudando a legislação nacional sobre os recursos hídricos, uniformizada com a legislação europeia, o que faz desta questão um problema global mais do que meramente nacional, observamos que em vez de proibir o uso dos cursos de água, inclusive os subterrâneos, para descargas industriais, regula-o para limites “aceitáveis” algo que não devia ser tolerável. Alguns dos sectores com legislação específica com normas de descargas de águas residuais são matadouros e unidades de processamento de carnes, suinicultura, curtumes, indústria da celulose e a actividade pecuária.

Historicamente, a regulamentação e o combate à poluição, para além de tímido, é algo recente, sendo que a primeira lei de bases para o ambiente, datada de 1987, e a actual legislação sobre recursos hídricos foi toda publicada entre 1988 e 2010. Por outro lado, e ao longo do século XX, a actividade industrial em Portugal foi-se instalando de forma completamente desordenada, numa lógica de menor custo possível, escolhendo a seu bel-prazer os locais onde se instalaria: junto a grandes vias de circulação rodoviárias, ferroviárias e fluviais.

Mesmo com o surgimento global do movimento ecológico, nos anos 60, e o contributo do corpo legislativo da CEE em matéria ambiental para a elaboração do seu correspondente nacional, a indústria portuguesa, tecnologicamente atrasada, foi usando displicentemente os recursos hídricos para despejar resíduos, sem qualquer política para o seu reaproveitamento, pois funcionam, muitas vezes, com estações de tratamento de águas sem capacidade suficiente para o seu nível de produção ou outras vezes mesmo sem qualquer tipo de estação. E assim chegamos a 2018, com as mais variadas indústrias, entre as quais as da celulose (a quem já devemos, o trágico estado da floresta portuguesa), à beira-rio plantadas, poluindo despudoradamente com o conhecimento de todas as autoridades, desde há muitas décadas.

Assim temos uma acumulação continuada ao longo dos anos de carga orgânica e fósforo expe­lida por fábricas e esgotos domésticos na bacia hidrográfica do Tejo, cujo resultado é a eutrofização (crescimento descontrolado de flora aquática) e consequente redução dos seus níveis de oxigénio e morte de grande parte da sua fauna. Situação que é agravada pela redução dos caudais com as várias secas dos últimos anos.

Assistimos, desde a recente descoberta do manto de espuma em Janeiro, abaixo de Vila Velha de Ródão, a um pingue-pongue de acusações e sacudir de responsabilidades entre o Ministério da Agricultura, a Associação Portuguesa do Ambiente, a Ins­pecção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Território, o Ministério Público e o Governo anterior através da actual líder do CDS-PP, e anterior Ministra do Ambiente e da Agricultura, Assunção Cristas. Cristas sendo um dos mais recentes elos da destruição da floresta endógena portuguesa que, em 2013, liberalizou a plantação de eucaliptos, faz-se agora usar da hipocrisia e mostra-se preocupada com o Tejo. A verdade é que já no seu Governo se tinham já registado grandes mortandades de peixe, neste mesmo rio, em 2015. Assistimos assim a esta troca de acusações, sobre os mais variados problemas que o país enfrenta há décadas entre PS, PSD E CDS, partidos que têm governado o país nestes últimos 45 anos, e que enquanto oposição defendem muitas vezes o contrário daquilo que fize­ram enquanto estavam no governo.

Foi negociada a construção, em 2014, de uma ETARI, com um investimento de €80 milhões por parte da Celtejo como contrapartida da extensão da licença para descargas acima dos limites inicialmente estabelecidos, até Dezembro 2018. Até agora só investiu €12 milhões com aquela nova ETARI. Em 2015, a Altri, dona da Celtejo, registou €118 milhões de lucro, em 2016, €77 milhões de lucro e, em 2017, €96 milhões. É óbvio que as contra ordenações graves aplicadas à empresa pela destruição continuada do Tejo não são mais do que custos operacionais.

Todos os problemas até agora enunciados, além de resposta legal, carecem de resposta política. A permissividade, diremos mesmo cumplicidade, é comum e extensível aos Go­vernos PSD-CDS, PS e à actual Geringonça. Esta complacência é resultado da promiscuidade entre o poder político e o poder económico e o total desinteresse pelo bem-estar das populações e pelo seu direito a uma natureza impoluta. O actual Ministro, evitando sempre culpar directamente a Celtejo, ficou-se pela constatação de que a seca agravou o impacto das ditas descargas, num claro sacudir de água do capote, e que a solução passaria por diminuir o “impacto visual da poluição” e que esta “proceda para jusante”, como se se pudesse conter o curso de um rio. A fauna, abaixo da superfície, com ou sem espuma, continua morta e não é continuando com o status quo e camuflando a poluição que devolve­remos o Tejo ao seu estado natural. Trata-se de uma questão de princípio e até de uma questão de sobrevivência: os rios não são esgotos e não são propriedade das Celtejos deste mundo, nem de nenhuma empresa privada, mas sim de toda a população.

Assim, é necessário identificar todos os focos de poluição em toda a bacia hidrográfica nacional e impor que os poluidores financiem, na sua totalidade, a construção de Estações de Tratamento de Aguas Residuais Industriais. É necessária a revogação imediata das licenças de descarga e a imputação das despesas de limpeza dos cursos poluídos aos prevaricadores e a sua responsabilização penal. É ainda necessário que se acabe com a asfixia de meios financeiros dedi­cados à vigilância da Natureza, que hoje é efectuada apenas pelos efectivos do anémico SEPNA e maior fiscalização das práticas poluidoras das unidades industriais. É necessário um verdadeiro planeamento do território e não a subjugação deste aos interesses de grupos económicos, de modo a assegurar a qualidade e acessibilidade universal aos recursos hídricos.

Rafael Santos

Publicado na revista Ruptura nº151 de Abril, Maio e Junho 2018

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