“Nós vamos vencer. Oh! Do fundo do meu coração, eu acredito”. Assim diz um dos versos da música, talvez mais emblemática, abraçada pela geração que se levantou pelos direitos civis nos EUA, “We Shall Overcome” (nós vamos vencer). Negros e negras, mulheres do movimento feminista e LGBTI+ fizeram dela um hino nos EUA dos anos de 1960. Algumas dizem até que foi cantada pela multidão que se juntou na noite do dia 28 de junho de 1969, em frente ao pequeno bar conhecido por ser o único aberto à diversidade de Nova York, o famoso Stonewall Inn.
A rebelião de Stonewall, como ficou conhecida a onda de subversão frente às recorrentes investidas violentas da polícia contra as pessoas LGBTI+, ocorrida inesperadamente, mas não inexplicavelmente, em junho de 1969, mudou a história e marcou, para sempre, o movimento LGBTI+.
Até o final dos anos de 1960, apenas no estado de Illinois a homossexualidade não era criminalizada nos EUA. Até a promulgação da Lei dos Direitos Civis (1964) e da Lei dos Direitos de Voto (1965) nos Estados Unidos, as “leis de Jim Crow” legalizavam as mais bizarras e criminosas políticas de segregação racial, o conhecido por American Apartheid.
As décadas de 60 e 70 do século passado foram marcadas por inúmeras revoluções políticas e culturais que tomaram conta do cenário mundial, como o movimento hippie, as manifestações estudantis, o maio de 68 francês, os manifestos contra a guerra do Vietnã, e, na América Latina, os movimentos de resistência contra as Ditaduras Militares.
Nos EUA, uma série de lutas que mobilizaram negros e negras e o movimento feminista mudaram o curso da história. E antes do final da década de 1960, viu-se acrescida pelo levante em movimento, o moderno movimento LGBTI+, dando uma grande demonstração de rebeldia e força. A Rebelião de Stonewall não foi a primeira e não foi o início do movimento LGBTI+ (ou movimento gay/homossexual como era denominado na época), mas sem dúvidas, foi o mais emblemática e inaugurou o modo de protesto por direitos iguais: a rebeldia do orgulho.
Portanto, sem menosprezar o papel, principalmente das drags, das travestis, das trans, gays e bis à frente da Rebelião de Stonewall, a madrugada do dia 28 de junho é produto de uma geração e seu resultado é a nossa bandeira.
Quem diria?
Cinquenta anos depois, o ano de 2019 se iniciou parecendo que a história havia andado para trás. A eleição de Bolsonaro abateu os sonhos e esperanças de milhares que, de alguma forma, acreditavam que estávamos, mesmo que em passos tímidos, no caminho por cada vez mais direitos para as pessoas LGBTI+.
Há seis meses, naquele triste dia 1º de janeiro, quando assistimos revoltadas, mas com efetivo medo, a posse do Bolsonaro, quem diria que hoje estaríamos comemorando, depois de colocarmos 3 milhões de pessoas nas ruas de SP, na maior Parada do Orgulho LGBTI+ do mundo, a criminalização da LGBTIfobia?
Pela dor, estamos reaprendendo que as condições de vida são conquistadas na luta. E em como todo jogo, antes que se dê por finalizado, pode-se ganhar, pode-se perder. Hoje, mais uma vez a humanidade é atormentada pelos demônios do obscurantismo, da ignorância tosca e boçal. Mais uma vez, as trevas reacionárias se erguem sobre o horizonte, famintas por engolir a ciência o colorido da diversidade.
Mas assim como não há caminho reto para a vitória, não o há para a derrota. As três milhões de pessoas, na maior manifestação política do mundo, foram às ruas dizer que não voltaremos para os armários e não baixaremos a cabeça. Como bem disse Madonna em seu novo álbum: They are so naive / They think we are not aware of their crimes /We know, but we are just not ready to act (Eles são tão ingênuos / Eles acham que não estamos cientes de seus crimes /Nós sabemos, só não estamos prontos ainda para agir).
A mais nova conquista do movimento LGBTI+, a criminalização da LGBTfobia, mesmo estando muito longe do que precisamos e merecemos, evidencia uma vitória muito maior. Uma das testemunhas da segunda noite da rebelião de Stonewall, o poeta norte-americano Allen Ginsberg, gay e uma das mais ativas vozes pela causa, um grande nome da geração beat que visitou então o Stonewall, relatou da seguinte forma o que viu lá: “Você sabe, os caras lá estavam tão lindos. Eles perderam esse olhar de medo que todas as bichas tinham há 10 anos”. A eleição de Bolsonaro trouxe uma dúvida: nós lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, interssexuais e todas as demais expressões diversas de gênero e sexualidade, voltaremos a ter esse olhar de medo? Hoje podemos afirmar: não, não mais!
Façamos dois, três, muitos Stonewalls
Cedo ou tarde a humanidade será julgada por seus crimes. No júri estarão as condições de vida das que virão e do planeta, o ar, a longevidade da maioria da nossa espécie, a quantidade de saberes e descobertas acumuladas, a capacidade de sermos felizes. Seremos julgadas por conseguirmos seguir sendo humanas e aproveitando da nossa humanidade ou não.
A diversidade, seja de gêneros múltiplos, orientações sexuais, construções culturais, cores das peles, tipos de peles, aspectos étnico-raciais, formas de vida etc, são características fundamentais da própria humanidade. A madrugada do dia 28 de junho de 1969 foi, senão, a própria humanidade se defendendo dos inimigos das suas belezas.
Hoje, mais do que antes, é preciso resgatar a história de luta do movimento LGBTI+, nos espelhar nos exemplos daquela rebelião. Diferente do que tenta fazer parecer o mercado pink, Stonewall não foi feito por “padrõezinhos”, foram as bichas pobres e pretas, as travestis das ruas, aquelas e aqueles por quem o mercado não se interessava e não o faz até hoje.
Essa, e os espíritos de combatividade e insubordinação, são as duas grandes lições ao movimento LGBTI+ de hoje, tão importante, mas tão cooptado pelo mercado e pelas tentativas de apassivamento. Não se trata de não celebrar ou de perder um dos nossos grandes trunfos, a alegria, se trata de levantar bandeiras, não pela inclusão de nossos corpos no mercado, mas da transformação de toda a sociedade e, junto dessa, o nosso direito de sermos o que somos e de vivermos da forma como bem queiramos e mereçamos.
Venceremos, eventualmente
A história da humanidade é a história da luta pela própria humanidade, pela luta do desenvolvimento das suas potencialidades. As diversidades de orientação sexual e gêneros sempre existiram e sempre irão existir.
Nosso mundo é estruturado pelas desigualdades sociais por classe, etnia/raça, gênero, origem/nacionalidade e orientação sexual. Essas desigualdades existem para fazer com que alguns poucos dominem o que muitos produzem. Vale lembrar que 1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta. Para justificar esse crime contra a humanidade, eles, os donos do poder, utilizam de falsas ideias para dizer que alguns grupos são merecedores de mais, enquanto outros merecem menos. Transformam diferenças em desigualdades de oportunidades e direitos. É assim que as ideologias do machismo, do racismo, da LGBTIfobia, e tantas outras, se perpetuam, pois elas são rentáveis aos donos do mundo. A luta LGBTI+ deve ser para os 99 % da população. Para vencer, é preciso saber contra quem estamos lutando.
Bolsonaro foi eleito por uma série de fatores. Um deles, e do tipo mais importante, se deveu à mobilização dos afetos reprimidos, das vontades sufocadas, da vingança e da inveja, do medo da liberdade… E é assim que mentiram sobre a “mamadeira de piroka”, o “kit gay”. O nosso orgulho resiliente é o medo deles, o pânico deles.
Passados alguns meses desde o momento mais crítico da situação brasileira nos últimos anos, a gigante Parada de São Paulo nos disse: olhemos em nossos olhos. Neles veremos coragem e não o medo; resiliência e não fraqueza; amor e não o ódio; resistência e não desânimo; alegria e não tristezas. Para eles, isso é insuportável. E nós, nós não estamos nem aí. Nós sabemos, no fundo dos nossos corações, que vamos vencer, lembrando nosso querido Jean Wyllys, exilado político do governo Bolsonaro: “durmam com essa, canalhas”.
Editorial do Esquerda Online – 28 de Junho de 2019