Trump, eleito em 2016, baseou uma parte importante da sua campanha em propostas que visavam limitar os direitos reprodutivos das mulheres, o acesso a contraceptivos, consultas de planeamento familiar e o direito fundamental a decidir sobre os nossos corpos. Os ataques declarados do presidente dos EUA fomentaram mobilizações importantes de milhares de mulheres, que foram também a base da convocatória da greve feminista internacional e que deixaram evidente que as mulheres vão à luta. Ao mesmo tempo, as suas declarações polémicas deram esperança a setores reacionários, que encontram na política trumpista a resposta aos seus anseios.
Nas últimas semanas, a discussão principal baseou-se no que se chama o “heartbeat bill”, uma tentativa de reduzir a realização de abortos no território americano. Lembramos que o aborto nos EUA é legal desde o caso “Roe vs Wade”, em 1973, embora mais de metade dos Estados americanos tenha legislação própria que limita o seu acesso, baseado geralmente na “viabilidade” do feto e não na liberdade de escolha da mulher sobre a sua vida.
Em 2019, vários Estados aprovaram legislação que proíbe o aborto após as 6 semanas (entre eles, Geórgia, Iowa, Ohio, Kentucky, Mississippi e Dakota do Norte), nenhum aplicado até agora. No Missouri, a proposta é a proibição após as 8 semanas de gestação. Para termos um termo de comparação, em Portugal, a IVG por decisão da mulher é permitida até às 10 semanas de gestação. Eté às 16 semanas em casos de violação ou crime sexual e atè às 24 semanas em caso de malformação do feto. É também permitido a qualquer momento em caso de risco para a grávida ou em caso de um feto inviável. No Alabama, através da Human Life Protection Act, foi aprovada uma proibição quase total ao aborto, ratificada pelo governador republicano Kay Ivey, que prevê a punição criminal dos médicos que façam abortos (com penas até 99 anos de prisão), não prevê excepções para casos de violação ou incesto (sob o argumento de que a criança não deve ser culpada pelos crimes do pai). Algumas das propostas querem até punir quem tem um aborto por causas naturais, por exemplo.
Além dos limites gestacionais, alguns Estados adotaram uma série de outras medidas que afetam a possibilidade de realizar o aborto, restringindo o financiamento público, restringindo a cobertura das companhias de seguro, exigindo a “aprovação” de mais que um médico e permitindo que os médicos se recusem a fazer o procedimento.
Com o Presidente Trump na Casa Branca e o juiz Brett Kavanaugh no Supremo Tribunal, os legisladores estaduais aprovam leis cada vez mais rigorosas contra o aborto. Um governo composto de uma elite conservadora, que se apoia na desigualdade e opressão sistémicas para melhor explorar os de baixo, toma decisões no sentido de limitar a liberdade de escolha de milhares de mulheres, na esmagadora maioria das vezes em situação de pobreza e com grandes carências familiares. É risível. As declarações públicas de todos os políticos e movimentos que têm promulgado e apoiado estes ataques às leis do aborto não deixam dúvidas – o objectivo é destruir “Roe vs Wade” e restringir o direito ao aborto, até o ilegalizar totalmente, em todas as situações.
A verdade é que, desde 2006, se tem visto uma redução em cerca de 26% do número de abortos realizados nos EUA, muito devido ao aumento da oferta de contraceptivos acessíveis, como o DIU. Contudo, Trump ataca aqui também – reduz o apoio ao Planned Parenthood, responsável por este trabalho de difusão de métodos contraceptivos e diz às mulheres que engravidam que devem parir, mesmo que a gravidez seja fruto de uma violação.
Quem acha que ilegalizar o aborto, tornando o processo penoso e culpabilizante, vai contribuir para diminuir a sua realização, está profundamente enganado. Sempre houve e sempre existirá aborto – a diferença está nas condições de segurança disponibilizadas a quem necessita de recorrer a este procedimento. Na verdade, ilegalizar, punir e limitar só o torna mais perigoso, aumenta a taxa de mortalidade e de complicações para a nossa saúde. Isto não é uma medida de menor importância, trata-se de uma questão de saúde pública.
A ilegalização e a restrição do aborto têm duas mensagens subentendidas, que evidenciam uma visão social para o mundo: que as mulheres devem manter-se sem o direito a escolher sobre as suas próprias vidas e que o seu papel social é, sobretudo um e apenas esse, o de manter-se reservadas à tarefa da reprodução (mesmo que seja fruto de uma violação ou que não tenhamos condições para criar aquela criança). À semelhança da série “The Handsmaid Tail”, o projecto de Trump e de outros setores das elites reacionárias pelo mundo prevê para a mulher, fundamentalmente, a tarefa da reprodução (forçada, se necessário) e a tarefa doméstica. As limitações aos direitos das mulheres estão ao serviço da ideia de que a sua função é exclusivamente ter filhos/as, garantindo a existência de novas gerações de trabalhadores/as, prontos a serem brutalmente explorados pelo sistema em que vivemos.
Os (bons) exemplos de países onde o aborto é legal
Analisando três países (Uruguai, Estado Espanhol e Portugal), onde o aborto é legal e o seu acesso feito através do serviço nacional de saúde, o que se vê é que nos anos iniciais após a legalização, existe um ligeiro aumento dos procedimentos e posteriormente um redução ou estabilização. A cientista política González afirma que o aumento condiz com a etapa de implementação da lei. “A partir do momento em que a lei se consolida e as mulheres adquirem mais confiança no sistema de saúde, o sistema também vai gerando caminhos claros para o acesso ao direito. E aí as mulheres começam a utilizar com maior frequência o sistema de saúde e a lei.” Não se trata necessariamente de “um aumento real no número de abortos, mas um aumento no número de abortos legais: as mulheres deixam de fazê-lo de forma clandestina e passam a fazê-lo de maneira segura.”
Em 2007, em Portugal, a legalização do aborto foi aprovada recorrendo a um referendo nacional, que substituiu a lei que, desde 1984, despenalizava o aborto em casos de risco de morte ou à saúde da gestante, anomalia fetal incompatível com a vida e gestação decorrente de violação. Assim como no Estado Espanhol e no Uruguai, em Portugal, nos primeiros anos da nova lei, o número de abortos legais aumentou. No nosso país, o aborto é permitido até à 10.ª semana de gestação a pedido da grávida, podendo ser realizado no SNS ou em estabelecimentos de saúde privados autorizados. É também permitido até às 16 semanas em casos de violação ou crime sexual e atè às 24 semanas em caso de malformação. É também permitido a qualquer momento em caso de risco para a grávida ou em caso de um feto inviável. O sistema público de saúde é responsável por cerca de 75% das práticas de aborto legal em Portugal, o método farmacológico é utilizado em cerca de 98% dos casos. Já no sistema de saúde privado, cerca de 93% dos procedimentos são realizados por método cirúrgico, com anestesia geral.
Como se pode ver pelos ventos que percorrem atualmente o mundo, os direitos conquistados não são dado adquiridos. Isto fica visível, por exemplo, com as movimentações de Rajoy, no anterior Governo do PP, que tentou fazer retroceder a lei do aborto, ou com as políticas de Trump, que efectivamente reduzem drasticamente o acesso a este processo. O desinvestimento nos serviços nacionais de saúde, como acontece em Portugal, também restringe diretamente o acesso ao procedimento, que passa a ser algo pago (a bom preço) numa clínica privada, significando que milhares de mulheres que recebem o salário mínimo, em Portugal, vão deixar de ter acesso a um direito básico, a autodeterminação sobre o seu corpo e a sua vida. Legalizar o aborto é fundamental, mas deve ser acompanhado pelo investimento nos serviços públicos de saúde, pela educação sexual nas escolas e pelo livre acesso a métodos contraceptivos eficazes e seguros.
As mulheres, em vários países continuam hoje a lutar pela legalização do aborto, como é o caso na Argentina, no Brasil e na Irlanda, que através do referendo vitorioso, conseguiram garantir o acesso ao aborto, mudando a vida de milhares de mulheres para melhor. Os panos verdes da Argentina tornaram-se um símbolo internacional das mulheres em luta pelo direito a decidir sobre os seus corpos.
Estamos solidárias com as mulheres nos EUA, que enfrentam as políticas machistas de Trump e juntamos as nossas vozes aos gritos das argentinas. O direito ao aborto, legal, no serviço nacional de saúde e gratuito é um direito fundamental das mulheres. Denunciamos todos os ataques e restrições que estão a acontecer nos EUA e exigimos a legalização do aborto nos países em luta.
SOBRE O NOSSO CORPO, NÓS DECIDIMOS!
http://www.generonumero.media/portugal-espanha-e-uruguai-o-que-aconteceu-apos-legalizacao-do-aborto/
https://www.vox.com/2019/5/16/18628002/abortion-ohio-alabama-georgia-law-bill-details´
https://www.vox.com/2019/5/14/18623474/alabama-abortion-kay-ivey-roe-v-wade