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A barbárie racista da esquadra de Alfragide: um julgamento que está a chegar ao fim


O julgamento dos dezassete polícias da esquadra de Alfragide que foram acusados pelo Ministério Público de agressão, racismo, sequestro, tortura e falsificação de autos, está a chegar ao fim. No dia 12 de Fevereiro, depois de ouvidas mais de 90 testemunhas, começaram as alegações finais no Tribunal de Sintra, onde o julgamento decorre.

Ao longo do julgamento, sobre os acontecimentos de 2015, os polícias mantiveram uma falsa tese sobre o sucedido, que levou a serem acusados de falsificação de autos. O caso pode ser dividido em dois momentos: a detenção violenta de um jovem nas ruas da Cova da Moura, disparo de balas de borracha e agressão contra habitantes do bairro, maioritariamente mulheres; e, horas depois, a violência e tortura sobre seis jovens (incluindo dois dirigentes do Moinho da Juventude) que se deslocaram à esquadra para pedirem explicações sobre o ocorrido na Cova da Moura. Este é um julgamento muito importante para quem luta contra o racismo e violência policial em Portugal.

Nas alegações finais, o Ministério Público, através do procurador, manteve as acusações contra a polícia sobre o ocorrido nas ruas da Cova da Moura: detenção ilegal; ataque à integridade física com disparos; falsificação dos autos da polícia; e ainda uso de cartuchos estranhos nas espingardas, o que leva a crer que os polícias introduziram ilegalmente balas nas espingardas. No entanto, o procurador recuou nas acusações de sequestro e tortura na esquadra, que perfaziam a maioria e os mais graves crimes.

Surpreendentemente, o Ministério Público, tentou justificar que os polícias podem ter interpretado naquele dia a ida de seis jovens desarmados à esquadra como um ato de invasão. Isto quando se provou que os policias não pediram reforços a outras esquadras; os jovens passaram instantes antes por outro polícia que não avisou a esquadra; e que apesar de alegarem que a esquadra foi apedrejada não havia pedras, nem danos nas paredes. Aceitar a tese da invasão permite agora justificar a atuação brutal da polícia naquele dia.

Lembremos que os jovens foram alvejados com tiros de borracha, foram espancados com bastonadas, pontapés e murros provocando múltiplos hematomas na cara, no corpo e alguns dentes partidos. Foram feitas injúrias racistas e ameaças de morte constantes. Espancaram e detiveram um jovem negro com uma deficiência evidente, que que ali se encontrava por acaso, proferindo para este as seguintes palavras: “Tiveste um AVC? Agora vais ter outro que te vai matar!”. Os jovens foram obrigados a estar deitados no chão cheio de sangue durante uma hora, sendo espezinhados e ofendidos constantemente pelos vários agentes que por ali passavam. Passaram horas na esquadra sem assistência médica, primeiros deitados, depois sentados e sobre ameaça, impedidos de levantar a cabeça e falar. Os jovens tiveram detidos durante mais de 72 horas por serem acusados de atacar a polícia, o que não foi provado. Até hoje, sofrem mazelas psicológicas pelo sucedido, como medo, pânico ou ansiedade. No entanto, o Ministério Público decidiu que toda esta violência não provocou um sofrimento “atroz” e por isso não se justifica a acusação de tortura.

O procurador também afirmou que não fica provado que as ofensas racistas proferidas se enquadrem no crime de ódio racial. É óbvio que todo este caso é racismo. A violência que ali aconteceu só pode ser justificada por um racismo estrutural da PSP que se torna brutal sobre as populações negras, pobres e periféricas. Vários polícias foram acusados de dizer coisas como: “pretos de merda”; “pretos do caralho”; “macacos”; “vão para a vossa terra”; “deviam morrer todos”; “sangue de preto, que nojo.”; “esterilizava a vossa raça”; “acabava com o vosso bairro”; ou “fazia falta um Salazar”. Foi toda uma esquadra, com todos os polícias ao serviço directa ou indirectamente envolvidos nesta brutalidade racista. Houve altas patentes envolvidas e a polícia deemonstrou até comportamentos milicianos, como o disparo de balas estranhas às forças policiais. Felizmente, a equipa de advogados dos moradores da Cova da Moura mantem todas as acusações contra polícia. E, se o julgamento não for justo, há probabilidades que se avance para outras instâncias.

O recuou do Ministério Público é a demonstração de um racismo estrutural, institucional e de Estado. O procurador disse em tribunal que a sua posição não deveria ser interpretada como política e que ali apenas se julgavam individualmente pessoas. No entanto, é óbvio que a não acusação de racismo e tortura é uma posição política. É o negar daquela brutalidade racista; evitar o debate do racismo institucional na PSP; e aceitar que a polícia pode atacar os direitos humanos e ter comportamentos milicianos.

A exemplar punição neste caso podia de alguma forma diminuir que situações destas aconteçam nas esquadras. Mas o Estado português, através do Ministério Público, decidiu que não: que é aceitável termos na polícia agentes racistas, brutais, sádicos e até fascistas. Infelizmente, se não houver punição, mais agentes da polícia racistas terão espaço para fazerem o que querem.

É verdade que este julgamento ainda não terminou e que a última palavra é dos juízes. No entanto, o recuou do Ministério Público, demonstra para onde o caso se encaminha. Haverá provavelmente pequenas punições ou bodes-expiatórios, mas não será punido o racismo brutal ou tortura que aconteceram naquele dia; assim como não se assumirá o racismo institucional presente esquadras portuguesas. Com o ascenso da extrema-direita no mundo, e com relatórios nacionais e internacionais que defendem haver um perigo fascista nas esquadras de Portugal, só uma punição exemplar sobre os agentes racistas pode estabelecer alguma justiça e impedir o crescimento desta realidade. O Estado Português parece ter decidido o contrário e assobiar para o lado.

Hoje, o debate sobre o racismo está aí nos jornais, nas redes sociais, nos locais de trabalho e nas ruas. Nos últimos anos aconteceram importantes e inéditas mobilizações do movimento negro e anti-racista contra a violência policial. No entanto, tudo isto não chegou para que o Estado português enfrentasse a brutalidade policial racista dando uma lição aos racistas e à extrema-direita. Com esta impunidade, casos idênticos ao da esquadra de Alfragide vão continuar a acontecer sem serem condenados.

A vitória ou a derrota neste julgamento deve servir para reflectir e enfrentar o racismo na nossa sociedade, que continuará nas esquadras, nas escolas, nos museus, nas ruas ou nos locais de trabalho da nossa sociedade, alimentando assim uma extrema-direita voraz. Agora, mais do que nunca, é necessário expandir e unir as forças contra o racismo, a violência policial e o ascenso da extrema-direita. Se não for feita justiça neste julgamento, esperemos que o caso continue para outras instâncias e que aí se possa condenar exemplarmente estes polícias. No entanto, sabemos que isso só acontecerá com mobilizações e sobre forte pressão social.

 

Pedro Varela

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