O bonapartismo no poder e o fascismo à espreita: Trotsky e a falência da democracia liberal na França dos anos 1930

 Após a vitória eleitoral de Hitler e a consequente instauração do regime nazista na Alemanha, a direção da Internacional Comunista viu-se impelida a rever a política estratégica que até então adotava face ao avanço do fascismo. Dispensando qualquer tipo de autocrítica, a burocracia estalinista, a partir de fins de 1934, iniciou um abandono prático de suas táticas “esquerdistas” baseadas teoricamente na linha do “terceiro período”. Em seu VII congresso, em agosto de 1935, a IC oficializou uma posição abertamente “oportunista”, defendendo a aliança da União Soviética com os “imperialismos democráticos” (França, Inglaterra, Estados Unidos etc.) contra os “imperialismos fascistas” de Hitler e Mussolini. Elaborada principalmente pelo comunista búlgaro George Dimitrov, a nova linha política orientava os PC’s a realizarem “frentes antifascistas” não só com os partidos socialdemocratas de seus países [os ex-“social-fascistas”], mas também com todos os setores “democráticos” de suas burguesias, conformando as chamadas frentes populares (1).

Um dos pioneiros nessa brusca inflexão política do movimento comunista internacional foi o Partido Comunista Francês (PCF) que, desde meados de 1934, buscara uma aproximação sindical e política com a Seção Francesa da Internacional Operária (SFIO) – nome pelo qual atendia o Partido Socialista, de linha socialdemocrata. Em consonância com as novas diretrizes que se gestavam na IC, o PCF, liderado por Maurice Thorez e Marcel Cachin, propôs em outubro daquele ano que o chamado à “frente única antifascista” fosse além das fileiras da classe trabalhadora e se estendesse ao Partido Radical (PR) chefiado por Édouard Daladier e Édouard Herriot, cujo conteúdo burguês era (mal) disfarçado por uma fraseologia “democrática” e pelo apoio social das classes médias com o qual contava.

A assinatura de acordos diplomáticos entre França e União Soviética e as novas diretrizes policlassistas da IC para o combate ao fascismo impunham ao PCF a adoção de posturas cada vez mais “moderadas” diante de um cenário de exacerbação da luta de classes. Nas eleições de abril-maio de 1936, realizadas em meio a uma forte ascensão das lutas operárias, uma aliança entre comunistas, socialistas e radicais levaria ao poder a Frente Popular encabeçada por León Blum. (2) Com as mãos atadas devido aos compromissos firmados com setores burgueses, o governo de frente popular, embora tenha realizado algumas reformas sociais (semana de trabalho de 40 horas, férias pagas etc.), acabou por funcionar, em última análise, como um freio do intenso processo revolucionário desencadeado naquele período pelo proletariado francês. (3) Desmoralizada aos olhos deste e atacada por amplas parcelas da classe dominante, a Frente Popular de Blum só resistiria por aproximadamente dois anos, sendo substituída, em 1938, por um governo abertamente conservador comandado pelo próprio Daladier. (4)

O abandono prático da teoria do “social-fascismo” por parte do PCF e o estreitamento dos laços entre as fileiras comunistas e socialistas derivou não só da reviravolta política da IC após a então recente tragédia alemã (a vitória do nazismo), mas também de uma expressiva movimentação de sentido unificador levado a cabo por amplos setores do proletariado francês. A partir de 1934, passaram a ocorrer manifestações conjuntas e pactos de “unidade e ação” entre as duas centrais sindicais mais importantes da classe trabalhadora francesa: a Confédération Générale du Travail (CGT), dirigida pelos socialistas, e a Confédération Générale du Travail Unitaire (CGTU), animada pelos comunistas. No início de 1936, essas práticas unitárias levariam à fusão entre as centrais, preparando o caminho para a conformação da Frente Popular. Apesar dos equívocos e oscilações de suas direções políticas, o proletariado francês avançava em termos subjetivos e organizativos, contribuindo para a exasperação dos conflitos sociais no país. Em junho, após a vitória eleitoral de Blum, mas antes de sua posse, os trabalhadores entraram em greve geral.(5)

O impulso unitário dos trabalhadores surgiu, em parte, como uma resposta ao crescimento político das forças reacionárias do país, expresso pelas seguidas exposições públicas de agrupamentos fascistas e monarquistas (Juventudes Patrióticas, Croix de Feu, Camelots du Roi etc.). Em fevereiro de 1934, milhares de integrantes destes agrupamentos, portando revólveres, navalhas e porretes, haviam tentado invadir o Parlamento para protestar contra a demissão do chefe de polícia de Paris (Chiappe), ligado aos fascistas, deixando vários mortos nos confrontos com as tropas policiais. A crise política resultou na demissão do governo Daladier e em sua substituição por um governo considerado de “União Nacional”, chefiado por Gaston Doumergue, do qual participavam nomes como André Tardieu, Herriot e o marechal Pétain. (6) O governo reacionário de Doumergue e todos os que se sucederam até a posse de Blum em junho de 1936 (Flandin, Bouissson, Laval e Sarraut) procuraram governar por cima do Parlamento, fazendo uso de inúmeros decretos-lei e outros expedientes discricionários. Acobertado por esses governos, o movimento fascista desenvolvia-se celeremente, armando-se para um combate decisivo contra as forças do proletariado.

Exilado na França entre julho de 1933 e julho de 1935, e depois na Noruega até janeiro de 1937, (7) Trotsky produziu alguns longos artigos e vários panfletos dedicados à situação política francesa em tela. Orientado seus adeptos a praticarem o “entrismo” nas fileiras do SFIO com vistas à formação de uma nova organização revolucionária no país (8), o revolucionário russo condenou duramente as práticas políticas desempenhadas pelos socialistas e comunistas junto à então agitada classe operária francesa. De forma implacável, Trotsky atacou a “oportunista” estratégia de frente popular levada a cabo pelo PCF em sintonia com os chefes da IC. Segundo o dissidente soviético, longe de afugentar o inimigo fascista, a “colaboração de classes” propugnada pelos estalinistas, ao atrelar o proletariado à burguesia imperialista do país, só fazia conter o ímpeto revolucionário do primeiro e cimentar o caminho para a reação política da segunda. Mesclando reivindicações imediatas da classe trabalhadora francesa e necessidades históricas do proletariado mundial, Trotsky e seus colaboradores apresentavam ao movimento operário consignas como o “controle do sistema financeiro, da indústria e do comércio pelos operários e camponeses”; “abolição do ‘segredo comercial’”; “serviços públicos para coletividade”; “por uma única Assembleia (abaixo o Senado!)”; “dissolução da polícia”; “milícia popular antifascista” e “pelo poder operário e camponês!”. (9) Rechaçadas pelos estalinistas sob a alegação de que a “situação não era revolucionária”, muitas dessas propostas comporiam alguns anos mais tarde o Programa de Transição, documento fundacional da IV Internacional. (10)

Tal como no caso alemão, visto em nosso artigo anterior aqui no EOL, Trotsky analisou a conturbada situação política da França do período 1934-1940 a partir da perspectiva da crise mundial do capitalismo e da correlata falência da democracia burguesa como forma eficaz de dominação política de classe. Em sua perspectiva, a república francesa não se encontrava em hipótese alguma imunizada contra a epidemia fascista, conforme propagandeavam alguns “imbecis sem esperança” que, evocando a tradição secular do sufrágio universal no país, repetiam e consolavam-se com o ingênuo adágio de que a “a França não [era] a Alemanha”. (11) Refutando-os, Trotsky afirmava que se na França, assim como em outras nações europeias (Inglaterra, Holanda, Suíça e países escandinavos), ainda existiam “parlamento, eleições, liberdades democráticas ou o que resta disso”, isso apenas expunha as “formas diversas” e os “ritmos desiguais” com que se expressavam “as consequências da decrepitude e decadência do capitalismo”. Em todos esses países, contudo, a luta de classes se exacerbava “no mesmo sentido em que antes se desenvolveu na Itália e na Alemanha”, pois o “pano de fundo é o mesmo em todos os lados”: (12)

Se os meios e produção continuam em mãos de um pequeno número de capitalistas, não há salvação para a sociedade. Ela está condenada a seguir de crise em crise, de miséria em miséria, de mal a pior […] A burguesia conduziu a sociedade à bancarrota. Não é capaz de assegurar ao povo nem o pão nem a paz. É precisamente por isso que não pode suportar a ordem democrática por muito mais tempo. É compelida a esmagar os operários com a ajuda da violência física. Enviar o exército contra o povo nem sempre é possível: frequentemente, ele começa a decompor-se e termina com a passagem de grande parte dos soldados para o lado do povo. Por isso o grande capital é obrigado a criar grupos armados, especialmente treinados para atacar os operários, como certas raças de cães são treinadas para atacar a caça.

Mais uma vez, Trotsky associava a crise capitalista à utilização de ferozes métodos políticos por parte do grande capital. O fascismo, assim, aparecia novamente como fruto de uma aguda situação social, na qual os elementos objetivos e subjetivos referentes às classes envolvidas na pugna relacionam-se complexamente, configurando um cenário político extremamente radicalizado:

O fascismo recruta seu material humano sobretudo no seio da pequena burguesia. Esta termina sendo arruinada pelo grande capital, e não existe saída para ela na presente estrutura social: porém não conhece outra. Seu descontentamento, revolta e desespero são desviados do grande capital, pelos fascistas, e dirigidos contra os operários. Pode-se dizer do fascismo que é uma operação de “deslocamento” dos cérebros da pequena burguesia no interesse de seus piores inimigos. Assim, o grande capital arruína inicialmente as classes médias e, em seguida, com a ajuda de seus agentes mercenários – os demagogos fascistas –, dirige a pequena-burguesia submersa no desespero contra o proletariado.

É somente por meio de tais procedimentos que o regime burguês é capaz de manter-se. Até quando? Até que seja derrubado pela revolução proletária.(13)

Trotsky caracterizou a configuração político-institucional francesa vigente a partir do governo Doumergue como um regime bonapartista de tipo “semiparlamentar”, no qual declinantes elementos democráticos conviviam com um poder discricionário do chefe governamental. Reeditando a mesma perspectiva interpretativa utilizada para a Alemanha de poucos anos atrás, Trotsky tomou o bonapartismo francês como uma etapa da transição (não inexorável) entre a democracia burguesa e o regime fascista, como pode ser percebido no sintético trecho abaixo:

Na França, o movimento da democracia ao fascismo ainda está em sua primeira etapa. O parlamento existe, mas já não tem os poderes de outros tempos, e nunca mais os recuperará. Morta de medo, a maioria dos deputados recorreu, depois de 6 de fevereiro [manifestação fascista], ao poder de Doumergue, o salvador, o árbitro. Seu governo se coloca acima do Parlamento. Não se apoia sobre a maioria “democraticamente” eleita, mas direta e indiretamente sobre o aparato burocrático, sobre a polícia e o Exército. (14)

Em um texto posterior, Trotsky definiria o governo de Sarraut-Flandin (que antecederia o governo da Frente Popular de Blum) como “uma variedade desse mesmo ‘bonapartismo’ semiparlamentar, ainda que ligeiramente inclinado ‘à esquerda’”, ilustrando em seguida sua afirmação com um sarcástico comentário sobre as palavras do próprio Sarraut:

Refutando a acusação de haver tomado medidas arbitrárias, [Sarraut] respondeu ao Parlamento, como se não pudesse fazer melhor: “Se minhas medidas são arbitrárias, é porque quero ser um árbitro”. Este aforismo não ficaria fora de lugar na boca de Napoleão III. Sarraut [não] se sente […] mandatário de um determinado partido ou de um bloco de partidos no poder, como querem as regras do parlamentarismo, mas um árbitro acima das classes e dos partidos, como querem as leis do bonapartismo. (15)

Aos olhos do “escaldado” observador russo, o bonapartismo francês, tal como o findado alemão (que antecedera o nazismo), teria origem no “começo de guerra civil entre os dois campos políticos extremos” (16), a saber, o da “revolução” e o da “contrarrevolução”. (17) O “relativo equilíbrio” entre estes, gerador de uma “temporária neutralização mútua”, explicaria, segundo Trotsky, o fato do “eixo de poder” ter se elevado “por cima das classes e de suas representações parlamentares”: “Foi necessário buscar uma cabeça de governo fora do Parlamento e ‘fora dos partidos’”. (18) Embora se apresentasse como o “juiz-árbitro entre os bandos em luta”, o governo Doumergue não seria de modo algum dotado de neutralidade política:

Contudo, um governo que se eleva por cima da nação não está suspenso no ar. O verdadeiro eixo do governo atual passa pela polícia, a burocracia e a camarilha militar. Estamos enfrentando uma ditadura militar-policial superficialmente camuflada por um cenário de parlamentarismo. Um governo de sabre como juiz-árbitro da nação: precisamente isso é o que se chama de bonapartismo.

O sabre não oferece por si próprio um programa independente. Ele é o instrumento da ‘ordem’. É chamado para salvar o que existe. O bonapartismo, ao se erigir acima das classes assim como o seu predecessor cesarismo, representa, em um sentido social, sempre e em todas as épocas, o governo do setor mais forte e firme dos exploradores. Consequentemente, o atual governo bonapartista não pode ser outra coisa senão o governo do capital financeiro, que dirige, inspira e corrompe o setor mais alto da burocracia, da polícia, da casta de oficiais e da imprensa. (19)

Para Trotsky, enquanto o Exército e a polícia ofereceriam, pela direita, o “principal apoio material” a Doumergue, o Partido Radical, com sua ampla base de massas constituída pela pequena-burguesia urbana e rural, sustentaria aquele governo pela “esquerda”. Este apoio dos radicais ao governo Doumergue resultaria do fato de que seus chefes, como Daladier e Herriot, “sob a ameaça do fascismo e, ainda mais, sob a do proletariado”, haviam sido obrigados a “passar do campo da ‘democracia’ parlamentar para o do bonapartismo”. (20) Entre outros aspectos, seria principalmente este significativo respaldo social do qual gozava Doumergue graças à sua aliança com o PR o que diferiria, segundo Trotsky, a dinâmica político-temporal do bonapartismo francês daquela que se fez presente no frágil e efêmero bonapartismo alemão. Na visão de Trotsky, o forte peso político das classes médias francesas fornecia um pouco mais de fôlego ao bonapartismo de Doumergue e seus continuadores, o que, consequentemente, proporcionava mais tempo (mas não muito) ao proletariado francês para se armar contra o fascismo:

Se se compara a evolução política da França com a da Alemanha, o governo Doumergue e seus possíveis sucessores correspondem aos governos Brüning, von Papen e von Schleicher, que preencheram o intervalo entre a República de Weimar e Hitler. No entanto, há uma diferença que, politicamente, pode ter enorme importância. O bonapartismo alemão entrou em cena quando os partidos democráticos se uniram, enquanto os nazistas cresciam com força prodigiosa. Os três governos “bonapartistas” da Alemanha, devido à fraqueza de suas bases políticas, equilibravam-se numa corda estendida sobre o abismo, entre dois campos hostis: o proletariado e o fascismo. Esses três governos caíram rapidamente. O campo do proletariado estava então dividido, não estava preparado para a luta, desorientado e traído por seus chefes. Os nazistas puderam tomar o poder quase sem luta.

O fascismo francês, entretanto, ainda não representa, hoje, uma força de massa. Em contrapartida, o bonapartismo tem um apoio, é verdade que nem muito seguro nem muito estável, porém de massa, na pessoa dos radicais. Entre esses dois fatos existe um nexo interno. Pelo caráter social de sua base, o radicalismo é um partido da pequena-burguesia. (21) Ora, o fascismo não pode converter-se em uma força de massa senão conquistando a pequena-burguesia. Em outras palavras: na França, o fascismo pode desenvolver-se principalmente às expensas dos radicais. Esse processo já ocorre na atualidade, mas se encontra ainda em sua primeira etapa […]

Ainda há tempo para preparar a vitória [do proletariado] […] Não se trata de anos, mas de meses. Esse prazo, evidentemente, não está escrito em parte alguma. Depende da luta das forças vivas e, em primeiro lugar, da política do proletariado e de sua Frente Única.(22)

Envidando esforços para uma caracterização mais precisa do bonapartismo francês, Trotsky, como de hábito, recorreu novamente a cálidas analogias de jaez histórico. Escrevendo ainda sob o governo de Gaston Doumergue, Trotsky afirmou que o papel desempenhado por este estadista (ou por qualquer um de seus “eventuais sucessores, como o marechal Pétain ou Tardieu”) não constituía um “novo fenômeno”, pois seria “similar ao que cumpriram Napoleão I e Napoleão III, em outras condições”: “A essência do bonapartismo consiste nisso: apoiando-se na luta entre dois campos, ‘salva’ a ‘nação’ através de uma ditadura burocrático-militar”. (23) Entretanto, na perspectiva do analista russo, os três líderes bonapartistas em questão se distinguiriam, sobretudo, em função de suas distintas localizações temporais no decorrer da evolução capitalista. Enquanto o primeiro Bonaparte teria representado o “bonapartismo da impetuosa juventude da sociedade burguesa”, o governo de seu “sobrinho” corresponderia ao momento em que, “na cabeça da burguesia”, já começava “a aparecer a calvície”. Doumergue, por sua vez, expressaria claramente “o bonapartismo senil do declínio capitalista”. (24)

Oportuno talvez seja ressaltarmos aqui o agudo senso de historicidade contido na analogia acima. Trotsky argumenta que o bonapartismo de Luís Bonaparte se situara em um momento histórico limítrofe da sociedade burguesa. Compartilhando das tardias considerações de Marx acerca do impasse histórico-político materializado no golpe de Estado de 1851 (a ideia de que a burguesia não podia governar mais, e o proletariado não o podia ainda), Trotsky, em sua metáfora capilar, alocou o Segundo Império francês em uma etapa intermediária (e divisora de águas) da história do sistema capitalista, na qual, embora a classe burguesa já se mostrasse indubitavelmente reacionária, as forças produtivas e as relações sociais capitalistas ainda encerrariam uma ampla capacidade de expansão e desenvolvimento, como acabou por se verificar.

O “senil” bonapartismo contemporâneo se constituiria, assim, para Trotsky, na penúltima alternativa política para uma desesperada burguesia face ao esgotamento histórico da sociedade capitalista – a última seria o fascismo. Quanto a isso, cabe lembrar que até os comunistas franceses, sintonizados com a nova linha da IC, encamparam, à sua maneira, a tese do bonapartismo esgrimida por Trotsky, o que em nada os aliviou das cáusticas críticas desferidas pelo revolucionário banido. “Durante o período Brüning-Schleicher”, recorda Trotsky, os dirigentes do Komintern proclamaram que “o fascismo já esta[va] aqui”, declarando que “a teoria da etapa intermediária, bonapartista” não passaria de uma tentativa de “disfarçar o fascismo” e favorecer a política socialdemocrata do “mal menor” [que se constituía na colaboração do SPD com os governos bonapartistas visando impossibilitar o triunfo fascista]. “Àquela época”, continua Trotsky, “socialdemocratas”, “socialdemocratas ‘de esquerda’” e “trotskistas” eram todos considerados como perigosos “social-fascistas”:

Mas agora tudo mudou. No que concerne à França, os estalinistas não se atrevem a repetir: “O fascismo está aqui!”; ao contrário, para impedir a vitória do fascismo nesse país, têm aceitado a política da Frente Única, que até ontem rechaçavam. Eles foram forçados a diferenciar o regime de Doumergue do fascismo. Mas não chegaram a essa definição como marxistas, e sim como empiristas. Nem sequer tentaram dar uma definição científica do regime de Doumergue. Aquele que se move no terreno da teoria em base a categorias abstratas está condenado a capitular cegamente ante os acontecimentos. (25)

E no calor destes acontecimentos que conformavam um cenário político efervescente, Trotsky alinhavava vaticínios que, em essência, aproximavam-se dos que fizera para a Alemanha pré-hitlerista: caso o proletariado não vencesse, venceria o fascismo. Não seria possível dizer de antemão, segundo Trotsky, por quanto tempo ainda continuariam “se sucedendo na França ministérios semiparlamentares, semibonapartistas”, e “por quais fases precisas” passaria o país “no curso do próximo período”. (26)Certo mesmo, para o revolucionário, era que não haveria “caminho de volta até a democracia pacífica”. (27)

Entretanto, contrariando as previsões do revolucionário russo, a França, mesmo sem ter vivido uma revolução proletária vitoriosa – o único caminho, segundo Trotsky, para se evitar o fascismo –, não conheceria o fascismo. Ainda que a classe trabalhadora francesa tenha mostrado mais disposição à unidade – forçando suas direções a encaminharem a política da “frente única” – do que sua irmã alemã, não se pode dizer que se decidiu conscientemente pela luta anticapitalista como a única maneira de evitar o fascismo. “A favor” do profeta de Deutscher, contudo, podemos lembrar que seria somente depois da Segunda Guerra (1939-1945), isto é, depois de uma catástrofe social de proporções mundiais, que o regime democrático-parlamentar voltaria a vigorar na França e, mesmo assim, permeado de indisfarçáveis traços bonapartistas, como um superpoderoso Poder Executivo – o que pode ser facilmente visto durante a V República gaullista. Afastada do poder a Frente Popular de Blum, a França seria dirigida até o final da década de 1930 por sucessivos gabinetes bonapartistas cada vez mais reacionários, culminando com o governo colaboracionista de Pétain, quando o “bonapartismo semiparlamentar” converteu-se em um bonapartismo que podemos classificar como “semifascista”.

Em um texto inacabado, escrito no ano de sua morte (1940), Trotsky pôde perceber que, mesmo tendo sido o proletariado francês derrotado e desacreditado na década que se encerrava, o regime fascista – diferentemente do que se verificara no caso alemão e do que ele mesmo, Trotsky, havia especulado havia poucos anos – não se implantou no país. Manifestando ainda seu peculiar cuidado no emprego de categorias, e sempre rigoroso analiticamente, o revolucionário recusou-se a considerar a França de Vichy como um regime de tipo fascista:

Na França não existe fascismo no sentido real do termo. O regime do senil marechal Pétain representa uma forma senil de bonapartismo da época do declínio imperialista. Mas esse regime só se fez possível depois que a prolongada radicalização da classe operária francesa, que conduziu à explosão de junho de 1936 [greve geral], falhou em encontrar uma saída revolucionária. A Segunda Internacional e a Terceira [Internacional], a reacionária charlatanice das “frentes populares”, enganaram e desmoralizaram a classe operária. Depois de cinco anos de propaganda em favor de uma aliança das democracias e da segurança coletiva [política da IC de apoio aos “imperialismos democráticos” contra os “imperialismos fascistas”], depois da súbita passagem de Stálin ao bando de Hitler [pacto germano-soviético de não-agressão firmado em agosto de 1939], a classe operária francesa se viu desprevenida. A guerra [Segunda Guerra Mundial] provocou uma terrível desorientação e o estado de derrotismo passivo, ou dito de forma mais correta, a indiferença de um impasse. Desse emaranhado de circunstâncias surgiu a catástrofe sem precedentes e, em seguida, o desprezível regime de Pétain. (28)

Precisamente por ser o regime de Pétain um bonapartismo senil ele não contém nenhum elemento de estabilidade e pode ser derrubado muito mais cedo do que um regime fascista por um levante revolucionário de massas.

 

Artigo de Felipe Demier, artigo publicado originalmente no Esquerda Online


NOTAS

28 TROTSKY, L. “Bonapartismo, fascismo y guerra” (“Escritos y fragmentos inconclusos”). Extraído de  http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro6/T11V236.htm (acessado em 26/07/2011). Tradução nossa.

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