Há uma discussão no feminismo marxista sobre se o trabalho doméstico é trabalho produtivo. Essa discussão, na verdade, encarna outra mais profunda: a diferença entre a natureza da exploração de classe e a natureza das opressões machista, racista, LGBTfóbica.
Trabalho doméstico é produtivo?
Algumas pessoas que defendem que o trabalho doméstico é produtivo afirmam que não concordar com essa tese é fazer um juízo de valor sobre o trabalho doméstico, realizado majoritariamente por mulheres. Ora, o caráter de produtividade de um determinado tipo de trabalho é objetivo, não subjetivo, e diz respeito a se o trabalho produz mais-valor (mais-valia) diretamente.
Vamos a um exemplo. O trabalho no comércio não é produtivo. É óbvio que o comércio é um trabalho fundamental para o sistema capitalista. Os capitalistas não conseguiriam transformar as mercadorias em capital se não pudessem vendê-las. Mas isso não quer dizer que o comércio produza valor. Ora, o comércio tem a função de distribuir as mercadorias, e não de trabalhar nelas, de agregar valor a elas.
Por acaso afirmar que o comércio não produz valor diminui a importância do trabalho no comércio para o sistema capitalista? Não. Por acaso essa é uma forma de diminuir as trabalhadoras envolvidas? Não. São trabalhadores e trabalhadoras, estão na mesma classe que as trabalhadoras produtivas. O mesmo podemos dizer das funcionárias da rede pública: não são trabalhadoras produtivas, não produzem mais-valor, mas são trabalhadoras essenciais para a manutenção do sistema.
O trabalho doméstico e o reprodutivo são fundamentais para a produção de mercadorias, isso é fato. Também é fato que os homens detêm o privilégio de não ter que trabalhar em casa a partir do machismo. Mas isso para nada diz respeito a se esse trabalho é produtivo ou não. A questão é: o trabalho doméstico produz mais-valor? Não. O marido não lucra um único centavo empurrando para a esposa o trabalho doméstico. Se o Estado fosse responsável pelo trabalho doméstico, e, portanto, se este fosse socializado, o marido não deixaria de ganhar um único centavo. Pelo contrário: a esposa teria melhores condições de trabalhar fora de casa de forma que a renda familiar aumentaria, beneficiando, portanto, também o marido. O custo do trabalho doméstico socializado, em termos monetários, seria bem menor do que é hoje.
É verdade que os capitalistas lucram a partir do trabalho doméstico tanto quanto lucram a partir do trabalho no comércio e do sistema de serviços. Mas isso não significa que estes trabalhos produzam mais-valor.
A diferença entre exploração e opressão
Chegamos, por fim, à discussão: toda opressão é uma forma de exploração? Em outras palavras: o machismo, o racismo, a lgbtfobia são também formas de exploração? Não, não são.
É verdade que toda forma de opressão traz privilégios imediatos. Toda forma de opressão é uma relação de poder. Mas isso não significa que a opressão produza mais-valor. O agressor não ganha um único centavo atirando uma lâmpada num casal gay. Um pai não ganha lucra agredindo ou expulsando da família uma filha ou filho trans.
Toda opressão, combinada com a exploração, serve à manutenção do sistema capitalista. Os capitalistas se utilizam das opressões para lucrar mais, explorar mais, por exemplo oferecendo salários mais baixos para as categorias femininas. Outro exemplo são os trabalhos terceirizados, que são majoritariamente ocupados por pessoas negras e por mulheres, também têm uma concentração maior de LGBTs, em particular de pessoas trans. Isso não significa que opressão e exploração sejam a mesma coisa ou tenham a mesma natureza.
A opressão e exploração têm naturezas distintas. A burguesia extrai o seu poder econômico, fundamental para sua existência, diretamente da exploração. Desta forma, entre as lutas contra a exploração, contra o machismo, o racismo, a lgbtfobia, não há luta mais ou menos importante, pois todas são necessárias, mas todas elas se traduzem na necessidade de derrubar a burguesia e instituir o socialismo. As diversas lutas contra a exploração e as opressões se unem e se sintetizam na luta pela revolução socialista.
Jéssica Milaré, Esquerda Online