1. O projecto de revisão constitucional apresentado pelo líder do PSD, Pedro Passos Coelho, já aprovado na generalidade pelo Conselho Nacional deste partido, representa a estratégia da grande burguesia portuguesa para, aproveitando-se da crise económica, destruir o que resta do estado social em Portugal. A substituição do “despedimento sem justa causa” pelo “despedimento sem razão atendível”, isto é, a total liberalização dos despedimentos; a eliminação de princípios de universalidade e gratuidade na saúde e na educação, isto é, a sua privatização; o fortalecimento dos poderes presidenciais e o enfraquecimento da proporcionalidade na representação parlamentar, isto é, a imposição de uma vertente mais discricionária no regime democrático-burguês em vigor, entre outras medidas, constituem uma radicalização da ofensiva patronal contra os trabalhadores e o povo em geral. Trata-se da revogação de conquistas obtidas pelos trabalhadores portugueses com a Revolução de 25 de Abril, já em franco declínio, em virtude dos ataques protagonizados pelos últimos governos, nomeadamente pelo governo PS/Sócrates e os seus Programas de Estabilidade e Crescimento (PEC).
2. Este projecto insere-se também numa estratégia, por parte do PSD, de, após ter viabilizado o Orçamento Geral de Estado deste ano e os dois PECs apresentados pelo governo PS/Sócrates, querer distanciar-se da desgastada governação socialista e capitalizar pela direita o descontentamento popular. A declaração do PSD de indisponibilidade para aprovar o próximo OGE e a recusa de futuros “arranjinhos”, leia-se acordos para uma governação de bloco central, evidencia o seu objectivo de conseguir uma maioria clara para que o PSD governe, com maioria absoluta ou com o CDS, mas em muito melhores condições de negociação. As últimas sondagens já colocam o PSD à frente do PS, restando a Passos Coelho aguardar as eleições presidenciais de Janeiro para, nos meses seguintes, deixar cair o governo e candidatar-se a governar o país.3. A resposta dada pelo PS ao projecto de revisão constitucional do PSD, através do ministro da Presidência, Pedro Silva Pereira, rejeitando-o em sua essência e definindo-o como “um atentado contra os direitos sociais dos portugueses” não passa, como é evidente, de um show de hipocrisia e calculismo eleitoral. PS e PSD foram e continuam a ser parceiros na destruição do estado social e na retirada dos direitos dos trabalhadores. Exemplos recentes são a sua total convergência na flexibilização das leis laborais e no aumento exponencial da precariedade com o código do trabalho de autoria de Bagão Félix/Vieira da Silva; no desinvestimento nos serviços públicos, e a sua entrega ao sector privado; na redução de direitos, com o aumento da idade da reforma; na elaboração e aprovação do Orçamento do Estado para 2010 e dos PECs, com aumentos de impostos, redução de benefícios sociais. Ambos foram coniventes com a milionária salvação da banca durante o despoletar da crise financeira de 2008, causadora, em grande medida, dos défices que ambos os partidos dizem hoje querer combater.
4. Bloco de Esquerda e PCP têm razão quando dizem que o PS que hoje afirma rejeitar a revisão constitucional do PSD pode, amanhã, negociar e aceitar medidas importantes desse mesmo projecto, como fez várias vezes no passado. Até porque não tem nenhum desacordo de fundo com ele. O PSD sabe disso e conta, ainda, com um importante elemento de pressão para levar o governo Sócrates à mesa de negociação da revisão constitucional ainda antes das eleições presidenciais, que é o seu apoio (directo ou indirecto, através da abstenção) à aprovação do próximo Orçamento do Estado. Orçamento este, possivelmente precedido de novo PEC, que significará, com toda a certeza, novos ataques aos direitos dos trabalhadores.
5. Não foi esta, porém, a percepção do candidato presidencial apoiado pelo Bloco de Esquerda e o PS, Manuel Alegre. Ele disse estar muito satisfeito com a reacção do seu partido: “Ouvi com muita satisfação e com muita alegria a posição do PS”, declarou aos jornalistas. Alegre, desta forma, avaliza a posição do PS como legítima, alimenta ilusões de que, de facto, o PS é contra a destruição do estado social e tenta capitalizar, ele também, a antipatia que essa iniciativa do PSD possa, legitimamente, provocar na população. Mas esta reacção de Alegre é expectável: afinal, ele é o candidato apoiado pelo PS, o partido de Sócrates e do governo. Para obter esse apoio, precisou comprometer-se a não criticar a governação, mesmo que isso signifique corroborar planos de austeridade que impõem a redução das prestações sociais e do investimento público e a privatização de empresas públicas, o que entraria em contradição com o seu alegado apoio ao estado social. É por isso que Manuel Alegre (quando já tinha o apoio formal do PS) não criticou o PEC2 e classificou-o, pelo contrário, de inevitável. Enquanto exige que o seu adversário Cavaco Silva pronuncie-se sobre o projecto de revisão constitucional do PSD, não se pronuncia, ele próprio, sobre o fecho de 701 escolas, determinado pelo governo, ou pela privatização agendada, para este ano, da Galp e da EDP, e para o próximo, da TAP, dos CTT e Estaleiros de Viana do Castelo.
6. As eleições presidenciais, infelizmente, estão a ser, inclusive no campo da iniciativa conservadora do PSD com o seu projecto de revisão constitucional, um factor de confusão política. Ao estar atrelado ao governo PS, Alegre não é capaz de desmascarar a responsabilidade política do governo Sócrates na apresentação desse mesmo projecto; ao estar atrelado a Alegre, o BE é igualmente incapaz de fazer uma oposição consequente a este mesmo governo. Esta oposição consequente só teria sido possível com a apresentação de uma verdadeira alternativa de esquerda, necessariamente independente do PS e do seu governo, às eleições presidenciais. O BE critica o governo, mas apoia o mesmo candidato de Sócrates. Esta confusão política tem dois preços: potencializa o espaço político da direita, esta, sim, a falar claro ao propor uma Constituição em que sejam varridos quaisquer vestígios de direitos sociais; e enfraquece as lutas populares contra os PEC’s. Alegre, por muito que queira, numa perspectiva eleitoralista, “estar bem com Deus e o Diabo”, está objectivamente ao lado do governo que mais ataques tem realizado contra as conquistas de Abril – e isso coloca-o no outro lado da barricada.