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Francisco Martins Rodrigues, 1927-2008

Na ma­dru­gada de um 22 de abril, há dez anos, fa­leceu em Lisboa, Fran­cisco Mar­tins Ro­dri­gues, ou Chico Mar­tins como era mais conhecido, aos 80 anos. Ve­te­rano mi­li­tante co­mu­nista du­rante quase seis dé­cadas, Chico Mar­tins foi uma das li­de­ranças mais im­por­tantes da re­sistência anti-fas­cista.

Ontem reuniram-se em Lisboa em almoço, por iniciativa de Ana Barradas, a companheira de Chico, um coletivo de amigos e camaradas para relembrá-lo. Uma das razões que me uniram à causa socialista foi a inspiração deixada pelo exemplo de Chico Martins. 

Ini­ciou suas lutas em 1949 no MUD (Mo­vi­mento de Uni­dade De­mo­crá­tica). En­trou no PCP (Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês) em 1951, e foi preso três vezes nos anos 50. As duas pri­meiras por al­guns meses, mas na ter­ceira, em 1957, foi con­de­nado a três anos. Co­nheceu Ál­varo Cu­nhal na prisão de Pe­niche, e par­ti­cipou da fuga es­pe­ta­cular de 1960.

Membro do co­mitê cen­tral do PCP, Chico Mar­tins era um dos jo­vens di­ri­gentes mais ca­pazes, senão o mais respeitado depois de Cunhal. En­ca­beçou a dis­si­dência com a di­reção do PCP, no con­texto da cisão entre Pe­quim e Moscou, sendo ex­pulso em 1964, quando im­pul­siona a fun­dação da Frente de Ação Po­pular (FAP) e de­pois o Co­mité Mar­xista-Le­ni­nista Por­tu­guês (CMLP). Vi­sitou Moscou nos anos 60, onde se re­a­lizou a reu­nião do co­mitê cen­tral da di­visão, e também a China e a Al­bânia. Preso no­va­mente em 1966, quando so­freu tor­turas atrozes, só ga­nhou a li­ber­dade dois dias de­pois do 25 de abril de 1974. Es­teve na fun­dação da União De­mo­crá­tica Po­pular (UDP), em de­zembro de 1974, e co­nheceu Dió­genes Ar­ruda, li­de­rança bra­si­leira do PC do B que mi­litou em Por­tugal nos anos da re­vo­lução, e favoreceu a unificação de diversos núcleos que criaram o PCP (R). Em 1984, rompe com a União De­mo­crá­tica Po­pular e funda a Or­ga­ni­zação Co­mu­nista Po­lí­tica Ope­rária, em um pro­cesso de rup­tura com o esta­li­nismo. De­sen­volve uma au­to­crí­tica pro­gra­má­tica da es­tra­tégia de co­la­bo­ração de classes. Homem de sim­pli­ci­dade no trato, grande cul­tura, in­te­li­gência aguda, ho­nes­ti­dade ir­re­pro­chável, fino humor e, so­bre­tudo, um mi­li­tante in­can­sável. Foi até o seu úl­timo sus­piro um re­vo­lu­ci­o­nário.

Chico Mar­tins, ou o “ca­ma­rada Campos” – pseudô­nimo da clan­des­ti­ni­dade -, li­derou a crí­tica pela es­querda ao PCP no pe­ríodo mais duro da re­sis­tência à di­ta­dura. Nos anos 60 apoiou as crí­ticas chi­nesas à União So­vié­tica e fundou o CMLP. Em 1964, es­creve “Luta Pa­cí­fica ou Luta Ar­mada”, um texto de opo­sição ao “Rumo à Vi­tória” de Ál­varo Cu­nhal, de­fen­dendo a luta ar­mada como es­tra­tégia de com­bate ao sa­la­za­rismo. Suas po­si­ções ex­pres­savam a ne­ces­si­dade da ra­di­ca­li­zação da luta contra o re­gime de Sa­lazar, após a can­di­da­tura de Hum­berto Del­gado e o início da guerra co­lo­nial, no con­texto mun­dial da vi­tória da re­vo­lução cu­bana, da der­rota da França na guerra da Ar­gélia e da es­ca­lada da guerra no Vi­etnam. Ainda em 1964, ao lado de João Pu­lido Va­lente e Rui D’Es­piney, cria a Frente de Ação Po­pular (FAP) e o CMLP com o ob­je­tivo de re­fundar o Par­tido Co­mu­nista. É preso de novo em 1966, e con­de­nado a 19 anos de prisão.

De­pois do 25 de abril, o PCP se trans­forma em um par­tido com in­fluência de massas. Um ano de­pois da queda da di­ta­dura de Mar­celo Ca­e­tano, o par­tido di­ri­gido por Cu­nhal é, pro­por­ci­o­nal­mente, um dos mai­ores do mundo, com algo como cem mil mi­li­tantes or­ga­ni­zados, em um país de menos de dez mi­lhões de pes­soas. Mas a linha po­lí­tica de de­fesa dos su­ces­sivos go­vernos pro­vi­só­rios en­ca­be­çados por di­fe­rentes alas do MFA (Mo­vi­mento das Forças Ar­madas) abriu à sua es­querda um im­por­tante es­paço, que é par­ci­al­mente ocu­pado por va­ri­adas or­ga­ni­za­ções ins­pi­radas no mar­xismo: cas­tristas, trots­kistas e, so­bre­tudo, ma­oístas. Chico Mar­tins era um dos di­ri­gentes mais ex­pe­ri­entes na ex­trema es­querda. Ele se afas­tara do CMLP e se unira aos es­forços dos nú­cleos de ins­pi­ração ma­oísta – Co­mitê de Apoio à Re­cons­trução do Par­tido (CARP-ml); OCPO; Co­mité Co­mu­nista re­vo­lu­ci­o­nário (CCR-ml); o grupo ‘O Co­mu­nista’; parte da Or­ga­ni­zação Co­mu­nista Mar­xista-Le­ni­nista Por­tu­guesa (OCMLP), e à União Re­vo­lu­ci­o­nária Mar­xista-Le­ni­nista (URML), que cons­ti­tui­riam o Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês Re­cons­truído PCP(R), uma or­ga­ni­zação que man­teria uma re­la­tiva clan­des­ti­ni­dade, ou semi-le­galidade, da qual a União De­mo­crá­tica Po­pular (UDP) seria a frente elei­toral.

O PCP(R) e a UDP se trans­formam em um mo­vi­mento de al­guns mi­lhares de mi­li­tantes, con­quistam in­fluência em al­gumas grandes con­cen­tra­ções ope­rá­rias, como na Grande Lisboa (entre ou­tras fá­bricas, no im­por­tante es­ta­leiro da Lis­nave), Porto e Se­túbal, e elegem um de­pu­tado para a Assembleia Cons­ti­tuinte em 1975. Fran­cisco Mar­tins Ro­dri­gues e seus ca­ma­radas ali­men­taram di­ver­gên­cias pro­gra­má­ticas com o esta­li­nismo do PCP(R) desde 1976. Em 1983 li­dera a rup­tura com o PCP(R) de al­gumas de­zenas de mi­li­tantes. Nunca foi for­mal­mente ex­pulso nem do PCP(R) nem da UDP. Par­ti­cipou da for­mação da Or­ga­ni­zação Co­mu­nista Po­lí­tica Ope­rária em 1984 e as­sumiu, desde então, a ta­refa de di­retor da re­vista bi­mensal ‘Po­lí­tica Ope­rária’. O des­tino de quem es­creve se uniu ao de Chico Mar­tins quando, em 1966, ainda uma cri­ança de nove anos, fui viver em Lisboa, acom­pa­nhando minha mãe que tinha sido trans­fe­rida pelo Ita­ma­raty para Por­tugal. Meu pri­meiro amigo de es­cola pri­mária, na quarta série, foi o Pedro. Ele era o filho mais velho de Chico Mar­tins. Dizem das ami­zades da in­fância que são in­que­bran­tá­veis, o que é justo. Só voltei ao Brasil em 1978. Nossa es­treita ami­zade na­queles anos nos levou à des­co­berta comum, pre­co­ce­mente, da mi­li­tância. Foi ao lado de Pedro, se­guindo-o, que me uni ao mo­vi­mento de estudantes do secundário, e foi assim que des­cobri o mar­xismo. En­si­naram-me também sobre a va­lentia e a honra, pelo exemplo, que é muito mais di­fícil que es­cre­vendo textos. Segui outro ca­minho po­lí­tico, porque me uni à Quarta In­ter­na­ci­onal.

O mundo ficou um pouco menor sem ele. Chico Mar­tins passou doze anos de sua vida na prisão, e ou­tros tantos anos na clan­des­ti­ni­dade, mas nunca perdeu a jo­vi­a­li­dade. Não se deixou vencer pela amar­gura. Re­co­meçou a mi­li­tância or­ga­ni­zada, em con­di­ções es­pe­ci­al­mente di­fí­ceis, mais de uma vez. Não tinha re­ceio de cor­rigir suas po­si­ções. Sabia que a ca­pa­ci­dade de au­to­crí­tica não di­minui um re­vo­lu­ci­o­nário, ao con­trário, o en­gran­dece. Es­tamos mais so­zi­nhos sem Chico Mar­tins.

 

Valério Arcary

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