Julia Cámara é historiadora e ativista feminista e faz parte do comité de redação da publicação Poder Popular.
Cinzia Arruzza é professora de Filosofia na New School for Social Research de Nova York, feminista e militante socialista. O seu livro “Las sin parte. Matrimonios y divorcios entre el feminismo y el marxismo” é uma obra de referência para compreender a relação histórica do movimento operário com o movimento pela emancipação das mulheres. Nascida em Itália mas residente nos Estados Unidos, esta visão dupla permite-lhe compreender fenómenos de um e outro lado do Atlântico. Nesta entrevista fala-nos da relação entre a opressão de género e de classe, mas também dos perigos do purplewashing e dos caminhos que deve tomar o feminismo neste novo ciclo para não se extraviar.
Julia Cámara: São vários os textos e artigos nos quais te posicionas a favor da teoria do “sistema unitário”, que defende que o patriarcado não existe como um sistema autónomo de opressão dentro do capitalismo. Trata-se de uma tese algo polémica entre as especialistas em estudos de género. Encontraste muitos problemas na hora de defender esta ideia?
Cinzia Arruzza: Sim, efetivamente coloca problemas. Trata-se no entanto de uma posição minoritária dentro da teoria feminista, especialmente porque durante os anos noventa e finais dos anos oitenta a teoria feminista perdeu a sua ligação à análise de classe e à crítica ao capitalismo. Nancy Fraser chegou a dizer, em jeito de provocação, que certo tipo de feminismo se teria convertido hoje num meio do capitalismo, do neoliberalismo. E se hoje é difícil para as feministas falar da centralidade da classe e do capitalismo, mais ainda é dizer que o patriarcado como sistema já não existe. Existiu, é certo, mas sob o capitalismo deixou de existir. Claro, esta é uma tese controversa e difícil de defender, especialmente porque um dos mal-entendidos consiste em achar que estamos a desvalorizar ou a rejeitar a importância da opressão sobre as mulheres, que a negamos ou que a reduzimos e integramos na exploração capitalista. E esta não é a ideia da teoria unitária. Pelo contrário, nós defendemos que a opressão das mulheres, a opressão de género no geral, é absolutamente perversa e está muito presente, e que realmente deveria converter-se numa das prioridades principais de qualquer tipo de movimento de classe. Pelo que, ao contrário do que se diz, estamos insistindo na sua centralidade.
A questão é que, devido ao carácter específico do capitalismo, ao modo como a acumulação capitalista funciona (tendendo à universalização, à totalização, à transformação e integração de todas as relações sociais prévias) as bases materiais do patriarcado foram corroídas. E isso acontece de uma forma mais acentuada nos países capitalistas avançados, mas de certo modo também é certo para os países sem capitalismo avançado, no sentido em que inclusive os países onde as relações patriarcais organizam aspetos como a produção e distribuição de alimentos estão integrados no mercado capitalista global. Pelo que o modo em que estas relações patriarcais funcionam já não são mais o modo como funcionavam, porque estão moldados e influenciados pelos constructos criados por exemplo pelo colonialismo e imperialismo. Há também alguns trabalhos históricos que sustentam que nestas sociedades, especialmente sociedades sem classes, a opressão de género foi introduzida pelo colonialismo, não existia antes da chegada europeia. Por isso é muito complicado falar, incluindo nestes casos, de relações patriarcais que não estejam influenciadas.
J.C.: Há algumas feministas indígenas que sustentam que na América Latina existia um sistema patriarcal prévio, que elas chamam “patriarcado original”, e que o colonialismo europeu introduziu um “segundo patriarcado”. O que defendem é que este sistemas interagem entre eles. Será que poderíamos olhar para este segundo sistema patriarcal como uma consequência do capitalismo? Porque na realidade o que estão defendendo é que o patriarcado como um sistema único e estruturado globalmente não existe.
C.A.: Sim, exato. Na realidade, um dos problemas com o feminismo radical dos anos 70 é que em certo modo assumia a existência de um “patriarcado global” que funcionava do mesmo modo em todos os lugares e que estava sempre presente. E isto não está certo. Atualmente numerosos estudos antropológicos esclareceram que, em geral, nas sociedades sem classes existiu uma certa igualdade de género, pelo que não é certo que exista uma falha de origem que sempre tenha lá estado. E se existiu, está claro que nem sempre funcionou igual, pelo que em qualquer caso podemos afirmar que o patriarcado sempre foi diferencial e nunca funcionou como um sistema global e original.
J.C.: Alguns grupos feministas atacaram esta teoria, argumentando que relativiza a importância da opressão de género. Queria perguntar-te se também encontraste grupos que utilizam a teoria do sistema unitário precisamente para isto, para argumentar que a opressão de género não é tão importante.
C.A.: Não, na verdade não. É certo que na tradição marxista existem numerosas organizações que sustentam que a opressão de género é uma opressão secundária, e temos importantes exemplos históricos disso, mas na realidade quem se interessou pela teoria unitária são pensadoras feministas, que tendem em todo o caso ao contrário. Em todo o caso devemos compreender que para que Marx seja útil para entender a problemática das mulheres é necessário que sejamos capazes de trabalhar com as categorias marxistas, mas também transformá-las e complementá-las. Não podemos tratar as teorias marxistas simplesmente como ideias predefinidas.
Também creio que existe um certo receio de atacar a teoria unitária, porque realmente as suas defensoras estiveram historicamente muito implicadas no feminismo. O que a teoria unitária tenta dizer é que a relação entre o capitalismo e o patriarcado não é simplesmente contingente, senão que a opressão de género é necessariamente produzida e reproduzida pelo capitalismo. Pelo que, se queremos libertar as mulheres, é necessário nos libertarmos do capitalismo. Frequentemente nas posições marxistas se relativiza a opressão de género, mas nas posições opostas. Afinal, dizer que a relação entre capitalismo e patriarcado é só contingente é dizer que em algumas situações será útil para o capitalismo aproveitar-se da opressão de género, mas que em outras é uma barreira, um obstáculo, e que, em qualquer caso, sob o capitalismo as mulheres podem aspirar a libertar-se muito mais que em qualquer sociedade prévia. E também há uma relativização aqui, nesta forma de compreender como funciona a opressão das mulheres na sociedade capitalista. Pelo que acho que a partir de ponto de vista teórico é preciso diferenciar-se.
J.C.: Na atualidade estão surgindo muitos novos grupos ativistas com mulheres muito jovens e tenho a impressão de que se trata de uma relação intergeracional complicada. Em certo modo estes grupo não têm em conta a produção feminista prévia ou inclusive as ideias e teorias que se estão desenvolvendo na atualidade, e pode parecer que se aproximam do feminismo de uma maneira essencialista e moralista. Que elementos consideras mais interessantes desta nova onda e como podemos ultrapassar esta lacuna?
C.A.: Concordo que uma certa lacuna geracional se está a criar. Creio que os temas principais tratados pelo feminismo jovem derivam, por um lado, de uma crise nas políticas de identidade, ainda que como dizias continua havendo uma essencialização da identidade feminina e inclusive do pensamento político estratégico: alianças, lutas, etc. mas por outro lado encontramos também a influência das teorias queer, que tratam precisamente de desessencializar as identidades e que são mais inclusivas por exemplo com as mulheres trans. Penso que este desenvolvimento é muito mais positivo. E uma das características, especialmente da vertente feminista queer, é um novo modo de interagir com os corpos. Uma positividade diferente sobre o próprio corpo.
De certo modo o feminismo radical dos anos 70 (não todo, mas sim uma parte) acabou se convertendo, como reação que foi contra o patriarcado, a opressão patriarcal e a visão masculina, em uma censura à beleza. No sentido da sua crítica à pornografia, a estigmatização de certos comportamentos das mulheres, a prescrição de certas atitudes como a recusa à depilação ou à adaptação aos estereótipos femininos no modo de vestir, etc. Pelo que gerou também um elemento normalizador, impôs um modelo para as mulheres que queriam ser livres. E penso que por sorte isso está praticamente acabado, e hoje em dia as feministas mais jovens têm uma atitude mais positiva e mais interessante face ao desejo, à aparência corporal, ao modo como cada qual vive o seu corpo.. Em primeiro lugar, creio que há uma maior positividade corporal, um maior disfrutar do próprio corpo entendendo que em todo o caso isso não corresponde à busca de validação masculina senão a uma posição pessoal e coletiva. E há uma relação mais sã com o desejo, porque claro que necessitamos pensar sobre como se constrói o nosso desejo, mas também temos que desideologizar. Eu penso que quando a política se entranha demasiado no desejo pode criar um desastre.
J.C.: Sim, está claro. Podemos vê-lo em vários períodos.
C.A.: Sim, e de certa forma temos que aceitá-lo! É certo, quiçá as nossas fantasias sexuais sejam o produto desta sociedade sexista, mas podemos viver com isso…são fantasias sexuais. Nada está mal, nada está necessariamente mal com isso. E creio que esta ideia se desenvolveu muito positivamente entre as feministas mais jovens. Porque também há caminhos pelos quais a teoria feminista pode converter-se realmente em opressora para as mulheres, desencadear um juízo sobre as mulheres que aparentemente se conformam com os estereótipos masculinos, mudar uma opressão por outra.
J.C.: Se há algo que se pode observar nesta nova “onda”, se é que a podemos chamar assim, é precisamente essa tentativa de reconhecer e aceitar como válidas todas as formas em que as mulheres escolham viver. Quiçá poderíamos falar por fim de um fruto bom da pós-modernidade… (risos). Este novo movimento se esforça muito por reconhecer a interseccionalidade, é muito interessante a maneira como se relaciona com a questão antirracista ou com a luta contra a islamofobia. E no entanto, a ausência de desenvolvimento teórico está levando a reconhecer como “válidas” todas as manifestações elaboradas pelos sujeitos oprimidos. Este poderá ser um perigo? Como se pode evitar este retorno ao individualismo?
C.A.: Sim, claro: o risco é cair em certo tipo de relativismo no qual a verdade individual é sempre a correta. E isto é problemático, porque não é assim, nós tomamos decisões sobre o modo como as condições nos influenciam, por muito que nos influenciem forçadamente. Existe o perigo de transformar o feminismo numa atitude individual. Por outras palavras: me liberto a mim mesma, decido sobre como me visto, decido como vivo o meu desejo, etc. Neste sentido isto é útil, porque mostra como a estrutura social determina as nossas decisões e os nossos padrões de vida. Mas por outro lado é preciso priorizar a luta coletiva, isto é: mudar o foco da identidade para a luta, à luta coletiva. Creio que esta é uma das tarefas que enfrentamos, ainda que obviamente não seja simples.
E não creio que o marxismo não tenha nada a dizer sobre isto ou sobre a questão da identidade. As identidades nunca foram fixas nem eternas nem históricas, e a luta tem um papel na transformação das identidades. Quando as pessoas participam nas lutas, realmente se estão a transformar a si mesmas, mudam, questionam as coisas que pensavam serem certas, adquirem novos pontos de vista. E penso que provavelmente isto contrasta com as políticas de identidade, que cristalizam e fetichizam as identidades. Diante isto devemos insistir na centralidade da luta, através da qual as identidades se transformam e perdem de vez o medo desta transformação.
Creio que esta é uma boa resposta à ideia de que o sujeito oprimido tem sempre razão. É óbvio que os sujeitos oprimidos nem sempre têm razão! Os sujeitos oprimidos têm o direito de estarem errados, exatamente como todo o mundo. A questão é que obviamente não se pode conceber um projeto de libertação sem ter em conta que as pessoas oprimidas devem libertar-se a si mesmas, mas isto não quer dizer que têm sempre razão. Há também um certo elemento paternalista em quem diz “oh, tu és oprimida, pelo que sempre tens razão”. Acho que é muito mais respeitoso, que se reconheça em maior grau que a outra pessoa é efetivamente uma pessoa, e que numa discussão tens a liberdade de não concordar. Isto permite que numa conversa se possam encontrar pontos em comum.
J.C.: Retomando a ideia de luta, parece-me interessante falar um pouco sobre a relação entre o movimento “Black Lives Matter” que se está a desenvolver nos Estados Unidos e a opressão das mulheres. Constitui o género um fator diferencial neste movimento e na maneira em que é tratado?
C.A.: De facto, um dos elementos interessantes de “Black Lives Matter” é que as mulheres foram de fato as mais visíveis: muitas das organizadoras mais importantes são mulheres. E claro isto tem consequências. Por exemplo, organizaram-se manifestações específicas sobre “Black Women Lifes”, como a que se organizou em Nova York no mês de julho. Trata-se de uma via de desenvolvimento crucial e esperamos que continue, porque ainda que esteja claro que estatisticamente há uma maior proporção de homens na prisão, há características particulares nas detenções policiais de mulheres negras: violações, humilhações, casos em que a polícia rapou as mulheres nas esquadras…ferramentas tradicionalmente específicas da repressão de género.
Durante a escravatura as mulheres negras não foram tratadas só como escravas, mas também como pertences sexuais, e a violação foi sistematicamente empregada como forma de disciplina. Isto derivou em parte numa hipersexualização de estas: por um lado, vêem-se esteticamente desvalorizadas por causa do seu cabelo, porque não correspondem com o que é visto como cânone universal de beleza (que não é senão o cânone branco e ocidental); por outro lado, são consideradas sexualmente exóticas, promíscuas, etc. Em certo modo os homens negros também foram hipersexualizados, no seu caso através da figura dos negros predadores sexuais. Pelo que se diria que é impossível, se examinamos o modo em que o racismo se desenvolveu historicamente nos Estados Unidos, separar o discurso racial do discurso de género, pois realmente se desenvolveram de maneira conjunta.
Neste sentido, também com uma certa perspetiva histórica, creio que “Black Lives Matter” realmente lhe está dando uma especial importância às mulheres negras. Estão sendo organizadas manifestações específicas em torno da vida das mulheres negras, e acho que a evolução é muito importante.
J.C.: Nos anos 80 e no início dos 90, uma parte do movimento feminista branco dos Estados Unidos e também da Grã Bretanha organizou uma série de manifestações noturnas chamadas “A noite e a rua também são nossas”, focadas na violência sexual e nas agressões constantes. As marchas costumavam desenvolver-se pelos bairros negros das cidades e isto potenciou essa imagem de que falavas antes dos homens negros como predadores sexuais. Estão surgindo problemas similares na atualidade? Qual é a atitude do feminismo liberal com respeito ao “Black Lives Matter”?
C.A.: Pois realmente depende. Há um apoio geral do movimento feminista branco, os problemas chegam quando há distúrbios (risos). Já sabemos que não só as feministas liberais, mas os liberais em geral, têm problemas com os distúrbios. E isto é um problema, porque podemos debater estrategicamente sobre o que é mais útil politicamente, mas não podes moralizar acerca do comportamento de pessoas que estão fartas de ser constantemente detidas, assassinadas, que passam dia sim e dia não na prisão por nada, que foram reduzidas ao trabalho escravo dentro da prisão e àquelas em quem se dispara por não quererem abrandar o carro…Não podes imaginar o nível de violência a que estas pessoas estão sujeitas nos Estados Unidos. Mas em geral sim existe um apoio, pelo menos formal, ao movimento “Black Lives Matter”.
Bom respeito ao tema da segurança sim há problemas. Por exemplo, faz dois ou três anos uma organização fez um vídeo sobre catcalling (vulgar piropo), que consistia basicamente numa mulher branca gravando durante 8 horas enquanto passeava por Nova York, com o objetivo de registar quantas vezes era interpelada. Estas horas se condensaram depois numa curta de seis minutos. E aqui houve um problema grande, porque quando os materiais foram selecionados houve uma desproporção no número de homens latinos e negros que assediavam a mulher. Claro que isto contribuía para perpetuar o mito do violador negro, dando a impressão de que, afinal…quem são os homens que normalmente costumam assediar nas ruas? Mais uma vez, vemos como esta falta de sensibilidade sobre a história do racismo nos Estados Unidos gera problemas. Ainda que se diga que há um apoio formal ao movimento “Black Lives Matter”, esta é uma coisa, e outra muito distinta é realmente adotar posturas antirracistas profundas. Para isso é preciso conhecer a história do racismo no país, com o objetivo de evitar a reprodução de estereótipos. O mais difícil aqui foi que quando houve protesto e se acedei ao material completo da gravação, nessas nove horas de vídeo havia muitos homens brancos a assediar a mulher. Então, porque puderam um? Como não pensaram nisto?
Acho que ainda há muito por fazer. O assédio nas ruas é um problema, claro, mas não é a pior forma de violência contra a mulher. Por exemplo, as violações nas cidades universitárias são endémicas nos Estados Unidos, e são sempre realizadas por homens brancos. E a maior parte das agressões provêm de familiares ou pessoas próximos ao meio familiar. Porque falar de catcalling sem contextualizar, sem explicar que se dá em um contexto onde a violência de género é extrema e acontece mais vezes no interior dos locais do que na rua, pode gerar mal-entendidos.
J.C.: Continuando com o tema da interseccionalidade e o purplewashing, podemos avançar para a questão da islamofobia. Não sei se em inglês existe um termo concreto para o que me castelhano chamamos de “islamofobia de género”, um conceito que se começa a teorizar como resposta ao atual panorama político e social.
C.A.: Gosto do termo, porque é certo que há uma dimensão muito forte de género na islamofobia, em vários sentidos. Determinado discurso feminista foi cooptado com a intenção de justificar a islamofobia, e este é um dos principais problemas que o feminismo deve encarar na Europa. Encontramo-nos numa situação na qual o feminismo corre o real risco de ser cúmplice de um dos piores fenómenos racistas em muito tempo. A reação de muitas feministas liberais a respeito da proibição do burkini, por exemplo em Itália, onde estiveram a favor, é algo honestamente vergonhoso e problemático. Significa que de facto não fomos capazes de escapar à nossa “branquitude” e revela até que nível a islamofobia está se armando como movimento de massas. E há também um elemento imperialista na ideia de que o Estados Europeus, neste caso a França, têm a tarefa de “libertar” e de fazê-lo, ainda por cima, através da polícia, que é na verdade o Estado o que está construído para oprimir as mulheres. Pelo que creio que a discussão sobre dimensão de género é absolutamente crucial, pois estamos da situação paradoxal de que a opressão das mulheres muçulmanas pelos Estados Europeus é justificada com argumentos racistas por mulheres que dizem ser feministas. Esta é a situação atual.
Isto não significa que as mulheres muçulmanas estejam sempre certas, como em geral os sujeitos oprimidos não estão sempre certos, mas as estruturas de opressão fazem com que diretamente não possamos ouvir a sua voz, não porque não falam mas porque não lhes é cedido esse espaço.
J.C.: Spyvak de novo..
C.A.: Sim! No caso do burkini, os políticos franceses falaram sobre ele, as feministas brancas e italianas falaram sobre ele…E onde se ouve a voz das mulheres implicadas? Em parte nenhuma, porque não têm voz, não têm nenhuma possibilidade de expressar-se por si mesmas. Estamos replicando em alguns casos a opressão de que precisamente atacamos os homens muçulmanos. Pelo que penso que as resistências que construímos contra a islamofobia deveriam converter-se na principal prioridade da esquerda europeia. Estamos numa situação verdadeiramente perigosa e aterradora.
J.C.: Especialmente porque, além da islamofobia como exemplo concreto, estamos vendo de novo como os problemas gerais procuram ser solucionados através dos corpos das mulheres.
C.A.: Sim, completamente. Creio que há um fator de verdadeira obsessão com os corpos das mulheres muçulmanas. Isto é algo sobre o que já escreveu Fanon faz 50 anos: um dos aspetos do colonialismo é o desejo de desvelar as mulheres muçulmanas, de despi-las.
J.C.: Sim, é como ver de novo a campanha de Argélia…
C.A.: Exato, o fenómeno repete-se. A imagem de uma mulher muçulmana rodeada por polícias franceses que a fazem despir-se creio que é uma das imagens mais violentas que já vi, em termos de violência de género, em muito tempo. Creio que a obsessão muito colonialista por tomar posse do corpo das mulheres muçulmanas, um desejo de expô-las, de fazê-las sentirem-se seminuas diante dos homens brancos.
J.C.: Quem sabe as novas lutas que nos cabem organizar neste período complexo tenham muito que ver com este exemplo da islamofobia de género. Crês que este tipo de agressões que combinam problemática racial, colonialista e de género preconizam o modelo das próximas agressões das quais nos cabe defender?
C.A.: Completamente. Isto é algo básico se queremos tentar criar as condições para um novo movimento feminista na Europa. O que é um pouco paradoxal neste feminismo liberal francês, mas também italiano, é que não há forma de ser capaz de abrir um diálogo com as mulheres muçulmanas, nem de organizar-se conjuntamente com elas nem de lutar conjuntamente com elas, sem converter a luta contra a islamofobia uma prioridade. Não existe maneira. Certamente não se trata de apoiar com slogans e pancartas, mas sim de ter a possibilidade que criar grupos feministas que incluam as mulheres muçulmanas. E porque deveriam elas unirem-se? Se nós estamos a sustentar certo tipo de assédio contra elas? Porque deveriam elas interessar-se por nós? Somos os inimigo, somos parte do problema para elas. Ou em qualquer caso, não somos parte da solução.
Devemos pensar muito cuidadosamente sobre como construímos um feminismo interseccional na Europa, o que significa aceitar que certos aspetos que não são considerados feministas num primeiro momento podem converter-se em temáticas feministas. De novo, por exemplo, os direitos das migrantes. A luta contra a islamofobia e pelos direitos das mulheres migrantes, pelos seus direitos laborais, é fundamental. Existe uma enorme massa de mulheres migrantes que são exploradas para obter a máxima margem de lucro, e sem trabalhar pelos seus direitos jamais seremos capazes de unir estas mulheres ao movimento feminista. Porque para elas, o seu “brexit” particular é precisamente este: o assédio racial. E vêm denunciando-o já faz mais de 40 anos.
VIENTO SUR Número 148/Octubre 2016
Originalmente publicado em http://vientosur.info/spip.php?article11829. Tradução do MAS