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Libertação das mulheres: a tradição marxista (II)

Por Sharon Smith, Dirigente da Internacional Socialist Organization (ISO/EUA) 

A Revolução Russa e os desafios para materializar a libertação das mulheres

Os líderes da Revolução Russa de 1917 desde o início fizeram do combate à opressão às mulheres um aspecto central de seu projeto revolucionário. Durante sua breve existência, este governo revolucionário ofereceu uma fugaz visão do que uma sociedade genuinamente socialista poderia oferecer ao criar condições materiais para que as mulheres sejam livres – mas também mostrou quais os desafios devem ser encarados para realizar esta libertação em um contexto pós-revolucionário.

Abaixo farei uma breve apreciação das conquistas legais e também das limitações destas para atingir uma genuína igualdade para as mulheres – indicando o grau de quão profunda deve ser a luta depois de uma revolução socialista para erradicar a opressão às mulheres.

Não há dúvidas, o governo revolucionário promulgou uma legislação que estabeleceu a completa igualdade política e social para as mulheres: o direito ao voto e a ocupar cargos públicos, o direito ao divórcio mediante reivindicação de qualquer uma das partes, o princípio de igualdade nos salários para trabalhos iguais, licença maternidade de quatro meses antes e depois o nascimento e acompanhamento médico ao bebê pago pelo governo. Aborto – visto apenas como uma questão de saúde – foi legalizado em 1920, e as mulheres ganharam o direito de obter o aborto legal em hospitais estatais. Apenas eram considerados criminosos aqueles que realizavam aborto com fins lucrativos.

Soma-se a isso o fato de a revolução ter derrubado todas as leis que criminalizavam a homossexualidade junto a outras leis que regulavam a sexualidade. [xxxi] O bolchevique Grigorii Btakis, em 1923, descreveu o impacto da Revolução de Outubro no que concerne a sexualidade:

“[a legislação soviética] declara absoluta não interferência do Estado e sociedade nas questões que tocam a sexualidade, até onde ninguém seja lesado, e o interesse de ninguém vai arbitrar no que concerne a homossexualidade, sodomia, e outras várias formas de satisfação sexual, as quais são apresentadas pela legislação europeia como ofensivas à moralidade – a legislação soviética aqui trata essas manifestações como “intercurso natural”. [xxxii]

Mas a igualdade legal, ainda que crucial, não atinge a liberdade na vida do dia-a-dia dentro da família. Como Lenin explicou em 1919,

Leis sozinhas não são suficientes, e nós não estamos de modo algum satisfeitos com meros decretos. Na esfera legal, contudo, nós fizemos tudo que nos cabia para por as mulheres em posição de igualdade e temos todo o direito de nos orgulhar disso. A posição das mulheres na Rússia Soviética é agora ideal se fizermos um paralelo com sua posição nos mais avançados Estados. Dizemos a nós mesmos, que isso, obviamente, é apenas o começo.[xxxiii]

Lenin normalmente se referia a opressão à mulher dentro da família como “escravidão doméstica”, e ele se preocupava com sua continuação na Rússia pós-revolução. Em uma conversa com Zetkin em 1920, alguns anos após a revolução, Lenin falou detalhadamente sobre os obstáculos que continuavam a existir na vida doméstica. A seguinte citação de Lenin deixa claro que o marxismo russo não esperava que a opressão às mulheres fosse desaparecer automaticamente depois da revolução, mas reconhece a necessidade para uma luta contínua:

“Pouquíssimos maridos, nem mesmo os proletários, pensam no quanto eles podem abrandar o fardo e as preocupações de suas esposas, ou aliviá-las por inteiro, se eles as auxiliarem no “trabalho doméstico”. Mas não, isso iria contra o “privilégio e a dignidade do marido”. Ele demanda descanso e conforto. A vida doméstica da mulher é um sacrifício diário em nome de uma miríade de trivialidades. Os direitos ancestrais de seu marido, seu senhor e mestre, sobrevivem imperceptíveis… Eu conheço a vida dos trabalhadores, e não apenas por ter lido. Nosso trabalho comunista entre as massas de mulheres, e nosso trabalho político em geral, envolve uma considerável educação sobre os homens. Nós temos que arrancar pela raiz o velho ponto de vista escravocrata tanto no partido quanto nas massas. Este é um de nossos objetivos políticos, uma tarefa tão urgentemente necessária quanto a formação de um grupo de camaradas, homens e mulheres, com um treinamento teórico e prático completo para o trabalho partidário entre as trabalhadoras.“ [xxxiv]

Da mesma forma Trotski argumentava, “instituir a igualdade política entre homens e mulheres no Estado Soviético é o mais simples dos problemas… mas para alcançar a igualdade entre homens e mulheres dentro da família é um problema infinitamente mais árduo”. E concluiu, “todos nossos hábitos domésticos devem ser revolucionados antes que isso possa ocorrer. E ainda assim é óbvio que ao menos que haja igualdade real entre marido e mulher na família, comumente às condições gerais da vida, não poderemos falar seriamente em igualdade no trabalho social e nem mesmo na política”.[xxxv]

Dessa forma os bolcheviques nunca abraçaram a ilusão de que uma revolução socialista vitoriosa é suficiente para acabar com a opressão à mulher. Velhos costumes e atitudes não podem ser mudados da noite para o dia, mas apenas ao longo do tempo, com advento de novas gerações que não tenham crescido recebendo a bagagem ideológica perpetuada pelas sociedades de opressão de classes ao longo dos séculos.

De fato, é apropriado entender que o grau de compreensão dos bolcheviques sobre o tema se dava em ver que a revolução não como o fim, mas o início da luta pela conquista da libertação da mulher. E mais importante, eles compreenderam a centralidade de libertar a mulher da penosa “escravidão doméstica”, que, ainda que seja difícil, é a chave para a sua libertação nas demais esferas da vida.

 

O ponto de inflexão na revolução

A revolução russa de 1917 inspirou uma onda de lutas revolucionárias pela Europa. A possibilidade de a revolução se espalhar para sociedades economicamente mais avançadas, particularmente a Alemanha, manteve vivas as esperanças do governo revolucionário nos seus primeiros anos. Esta esperança se desfez com a derrota final da revolução alemã em 1923. A Rússia, com sua economia abalada, ficou isolada. O terreno político foi então transformado: a década seguinte deu o testemunho da ascensão contrarrevolucionária stalinista na Rússia e do fascismo na Europa.

A revolução russa também produziu uma mudança na esquerda americana. O PS foi capaz de passar incólume à guerra, já que se sustentou uma firme posição contra a guerra. Mas em 1919 os revolucionários russos formaram a Terceira Internacional, a Comunista, composta por 19 organizações e partidos. A Revolução Russa então acelerou o já estabelecido conflito entre as alas esquerda e direita do PS, na medida em que os revolucionários do partido apoiaram os bolcheviques e o grupo reformista se opôs a eles. Em 1919 o PS perdeu a sua maioria de esquerda que construiu o Partido Comunista (PC) – filiado à Terceira Internacional. A maioria dos membros da IWW os seguiu – muitos dos quais já haviam deixado ou sido expulsos do PS.

A década de 20, contudo, provou ser um difícil período para aqueles que queriam defender a tradição marxista. O governo americano conduziu uma perseguição massiva e deportação de imigrantes suspeitos de atividade socialista ou anarquista. Além disso, com a consolidação do poder de Stalin na União Soviética em 1928, o PC expulsou a minoria que defendia a oposição trotskista contra o stalinismo.

O resultado foi o aparecimento de dois movimentos socialistas distintos, um pró Stalin e outro pró Trotski. A esquerda socialista foi composta por estes dois grupos até a emergência da Nova Esquerda nos anos 1960.

Deste modo, algumas das mais dedicadas e talentosas lideranças femininas do início do século XX acabaram separadas em distintas organizações com posições politicas opostas no tocante a questões fundamentais. Konikow, uma das fundadoras do movimento trotskista nos Estado Unidos, continuou seu trabalho em torno da distribuição de métodos contraceptivos seguros, e escreveu extensivamente sobre o direito das mulheres de controlar a natalidade no jornal trotskista Militant, nos anos 1930 e início dos 1940. Gurley Flynn se uniu ao PC em 1936 e escreveu regularmente em uma coluna para o Daily Worker.

Assim, as veteranas dos movimentos radicais do início do século XX cumpriram um papel chave na transmissão de suas tarefas para as gerações mais novas de mulheres na esquerda americana.

 

Publicado originalmente em https://isreview.org/issue/93/womens-liberation-marxist-tradition

Tradução: Caio Garrido

Revisão: Paula Farias

 

Notas

[xxxii] Quotes in J. Lauritson and D. Norsad, The Early Homosexual Rights Movement 1864–1935 (New York, 1974); cited in Noel Halifax, Out, Proud and Fighting (London, 1988), 17.

[xxxiii] V. I. Lenin, Speech at the Working Women’s Congress, Moscow, 1919, Lenin’s Collected Works, 4th English Edition, (Moscow: Progress Publishers, 1965), Volume 30, 40–46, https://www.marxists.org/archive/lenin/w

[xxxiv] Clara Zetkin, “Lenin on the Women’s Question” (An Interview with Lenin on the Woman Question in 1920), http://www.marxists.org/archive/zetkin/1….

1988), 17.

[xxxv] Leon Trotsky, “From the Old Family to the New,” Pravda (July 1923), http://www.marxists.org/archive/trotsky/….

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