Por Sharon Smith, Dirigente da Internacional Socialist Organization (ISO/EUA)
Os marxistas clássicos do século XIX e do início do século XX – Karl Marx, Friedrich Engels, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, V. I. Lenin, Alexandra Kollontai e Leon Trotski – desenvolveram uma estrutura teórica unindo a luta pela libertação das mulheres à luta pelo socialismo. Ao passo que suas teorias precisam ser atualizadas[ii], as mesmas vêm sendo rejeitadas ou ignoradas.
Além disso, a história de quem sustentou a tradição marxista sobre a opressão das mulheres ao longo do século XX é frequentemente invisibilizada – ainda que estas ativistas e teóricas tenham formado um fio de continuidade indispensável desde a vitória do sufrágio feminino na década de 1920 (comumente chamada de “primeira onda” do feminismo americano) ao levante dos anos 60 pela libertação da mulher (conhecido como “segunda onda”).
Marx e Engels localizaram as raízes da opressão às mulheres no papel que estas cumprem no seio da família nuclear das sociedades de classe. Eles entendiam a função das mulheres como “reprodutoras” biológicas resultado de seu status subordinado dentro da família nuclear e, consequentemente, de toda a sociedade. Na sociedade capitalista as mulheres das famílias proprietárias produzem herdeiros; nas famílias de trabalhadores, reproduzem as gerações de mão de obra para o sistema.
A classe dos capitalistas se tornou dependente deste método de “reprodução privada” dentro das famílias de trabalhadores, porque ele diminui a sua responsabilidade financeira pela reprodução da mão de obra, que é, então, amplamente provida pelo trabalho não pago no âmbito familiar. Isto, por sua vez, exige uma transformação socialista da sociedade, que não pode ser atingida gradualmente, mas apenas através de um processo revolucionário, em um enfrentamento decisivo entre as classes.
Marx e Engels rapidamente identificaram o papel revolucionário da classe trabalhadora, ou proletariado, como única classe capaz de conduzir a mudança para uma sociedade socialista. No Manifesto Comunista, eles afirmaram, “O que a burguesia produz, antes de mais nada, são seus próprios coveiros. Sua derrocada e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”[iii]. Como observou Hal Draper,
“A formulação clássica do princípio da auto emancipação foi escrito em 1864 sendo a primeira premissa das regras da Primeira Internacional – de fato, como sua primeira cláusula:
‘CONSIDERANDO, que a emancipação da classe trabalhadora precisa ser conquistada por ela própria…’”[iv]
Esta estratégia revolucionária baseada no classismo não minimiza a importância de combater a opressão às mulheres na teoria marxista do final do século XIX e início do XX. Como Leon Trotski argumentava, “para que possamos mudar as condições de vida nós devemos entendê-las através do olhar das mulheres”[v].
Assim como Marx e Engels fizeram, a geração seguinte de marxistas reconheceu o caráter revolucionário de toda a classe trabalhadora – e viram as mulheres trabalhadoras como componente chave para atingir o potencial revolucionário. Eles enfatizavam a má condição das mulheres e se esforçaram para organizar explicitamente movimentos de mulheres trabalhadoras.
Marxistas europeus da Alemanha à Rússia estiveram correntemente na vanguarda da luta pela libertação das mulheres, ao mesmo tempo em que desenvolviam a teoria marxista no que tocava o que chamavam “a questão da mulher”. Fizeram isso não apenas em um momento de crescimento dos conflitos inter-imperialistas que conduziram o mundo para a Primeira Guerra Mundial, mas também no contexto em que o movimento revolucionário socialista crescia. Com o início da guerra veio à tona um redemoinho de patriotismo em todos os países beligerantes e isso levou à divisão do movimento socialista, pois partidos inteiros da Segunda Internacional mergulharam, junto às burguesias locais, no intento de promover a guerra.
A cisão entre revolucionárias socialistas e aquelas por elas chamadas de “feministas burguesas” se deu não por questões menores de tática e estratégia, mas por princípios políticos cruciais. No caso da Rússia czarista, por exemplo, as mulheres burguesas se puseram a defender a guerra em troca do seu direito ao sufrágio. A Liga pela Igualdade das Mulheres chamou as russas a “dedicar toda nossa energia intelectual e nossos conhecimentos ao nosso país. É a obrigação que temos para com a pátria, e isto nos dará o direito de participar, igualmente aos homens, na nova vida de uma Rússia vitoriosa” [vi].
Como socialistas, Hal Draper e Anne G. Lipow, descreveram as revolucionárias socialistas
“… deram um forte apoio para todas as demandas democráticas de direitos das mulheres. Mas seu movimento se diferenciava daquele das feministas burguesas, não apenas no contexto programático no qual apresentavam as “demandas democráticas”, mas também, e consequentemente, na sua escolha por enfatizar demandas imediatas. Esta visão, em termos marxistas, como um movimento classista, se torna um movimento de mulheres trabalhadoras”.[vii]
A auto-organização das mulheres socialistas
Engels encorajou o socialista alemão August Bebel, autor de Mulher e o Socialismo, de 1878, a apoiar a fundação de um movimento socialista de mulheres trabalhadoras dentro do Partido Social Democrata Alemão (SPD). O resultado foi a formação de uma secretaria de mulheres no partido em 1891, tendo Clara Zetkin, dirigente do SPD, como seu centro político e organizativo.
Zetkin conduziu este trabalho até a divisão da Segunda Internacional quando deixou o partido para se unir a um pequeno grupo composto por outros revolucionários contrários à guerra, entre os quais estavam membros do partido bolchevique russo, que buscavam construir um movimento internacionalista principista contra a guerra imperialista. Depois disto Zetkin continuou seu trabalho por fora da Segunda Internacional.
Na época da fundação da secretaria de mulheres do SPD, em 1891, as mulheres na Prússia eram legalmente proibidas de participar de reuniões políticas ou aderir a partidos. Finalmente, em 1902, conforme lembrou Bebel, “o secretário do Estado prussiano concedeu permissão às mulheres para frequentarem reuniões de clubes políticos, com a condição de que se sentassem em uma área separada para elas nos salões” [viii].
As conquistas da secretaria de mulheres, vista neste contesto, foram substanciais. Sua publicação Gleichheit (Igualdade), alcançou uma circulação de 23.000 exemplares em 1905 e 112.000 em 1913. [ix]
O movimento de mulheres trabalhadoras alemãs logo se tornou o epicentro internacional do movimento socialista de mulheres sob a rubrica da Segunda Internacional, e teve como prioridade a organização de trabalhadoras nos sindicatos. Em 1907, Zetkin organizou a primeira conferência internacional de mulheres socialistas, em Stuttgart, nos dias que precederam o congresso da Segunda Internacional. Neste congresso a Internacional votou pelo sufrágio universal para todas as mulheres e homens.
A questão sobre se deveriam lutar pelo sufrágio universal ou parcial foi um ponto de forte polêmica. Algumas organizações pelo sufrágio das mulheres reivindicavam (e em alguns países europeus conquistaram) o sufrágio parcial das mulheres – com o direito ao voto baseado na posse de propriedades e pagamento de impostos (restringindo o direito ao voto às mulheres com recursos financeiros). Mas em muitos desses lugares o direito ao voto dos homens também era restrito e negava-se aos trabalhadores o direito de votar. Dessa forma, o sufrágio parcial apenas aumentava os poderes eleitorais das classes dirigentes.
As dirigentes da Segunda Internacional, incluindo Zetkin, Luxemburgo, Kollontai e Eleanor Marx, tinham clareza sobre a diferença entre as demandas socialistas para as mulheres trabalhadoras e aquelas reivindicações de mulheres de classe média. Elas defendiam o sufrágio universal no contesto da luta de classes.
Em um comunicado de preparação à conferência de Stuttgart Zetkin defendeu o direito de todas as mulheres votarem, independentemente da classe à qual pertencessem:
“Mas quando reivindicamos o sufrágio às mulheres nós só podemos fazer na medida em que se oriente por ser algo inerente à mulher e não pelas posses de cada uma, à quantia de propriedades…
Deste ponto de vista histórico, demandamos a igualdade entre as mulheres e o direito ao voto como um reconhecimento dos direitos políticos próprios de nosso sexo. Esta é uma questão que se aplica a todas as mulheres, sem exceção. Todas as mulheres, seja qual sua posição, deve reivindicar igualdade política em prol de uma vida mais livre, voltada a produzir riquezas para toda sociedade. Além disso, no mundo das mulheres, assim como no dos homens, existe uma legislação de classe e há a luta de classes, e estas aparecem tão estabelecidas que às vezes entre as mulheres trabalhadoras socialistas e aquelas pertencentes à classe média pode haver antagonismos… Esta classe média deve reivindicar o sufrágio, não apenas para seu próprio interesse, para assim enfraquecer o poder do sexo masculino, mas elas devem também trabalhar em função de uma reforma social completa, e dar toda ajuda que elas possam neste sentido. Mas enquanto nós estamos prontas, como socialistas, para usar toda nossa força política em favor desta mudança, seremos ainda obrigadas a perceber a diferença entre nós e elas.” [x]
Classes sociais e a opressão às mulheres
Em 1909 a revolucionária russa Alexandra Kollontai escreveu o que se provou ser uma contribuição definitiva para a análise marxista da opressão à mulher, As bases sociais da questão da mulher onde ela argumentava,
“O mundo das mulheres é dividido, assim como é o mundo dos homens, em dois campos: os interesses e inspirações de um grupo são próximo à burguesia, enquanto o outro grupo tem uma estreita conexão com o proletariado, e suas reivindicações por liberdade abarcam uma solução completa para a questão das mulheres. Assim, ainda que os dois campos sigam o slogan de “libertação das mulheres”, seus alvos e interesses são distintos. Cada grupo inconscientemente tem como ponto de partida as aspirações de sua classe, o que dá um colorido específico, de classe, para as tarefas e objetivos que definem para si… ainda que as demandas das feministas sejam aparentemente radicais, não se deve perder de vista o fato de que as feministas não podem, dada sua posição de classe, lutar pela transformação fundamental da sociedade, sem a qual a libertação das mulheres não pode ser completa” [xi]
Mas o outro lado da abordagem de Kollontai envolveu um esforço para convencer os homens da classe trabalhadora a apoiar as reivindicações das mulheres de sua classe. Os bolcheviques participaram de greves e lutas que envolviam na maior parte homens e argumentavam que seus interesses repousariam na luta por demandas como a proteção à maternidade e o salário igual às mulheres.
Durante os preparos para o Congresso Pan-Russo dos sindicatos em 1917, Kollontai convocou os trabalhadores homens a defender o salário igual entre homens e mulheres argumentando,
“O trabalhador consciente deve compreender que o valor do trabalho masculino depende do valor do trabalho feminino, e que a ameaça de substituir o trabalho masculino por um trabalho mais barato feito por mulheres permite aos capitalistas pressionarem o salário dos homens, rebaixando-os ao nível do salário feminino. Dessa forma, somente a falta de conhecimento permitiria alguém ver no tema da equidade salarial uma questão meramente ‘de mulheres’” [xii]
Ao mesmo tempo seria incorreto assumir que o marxismo clássico desconsiderava os problemas das mulheres da classe média ou até mesmo das burguesas. Pelo contrário, Clara Zetkin expressava ter clara empatia com todas as mulheres, subjugadas dentro do núcleo familiar. Como ela argumentava em 1896, a lei familiar dita às mulheres das classes altas que seus maridos seriam seus superiores: “ela ainda é dependente de seu marido. O protetor do sexo frágil sobreviveu na lei familiar à qual diz: E ele deverá ser seu mestre.” [xiii] Ela também argumentava,
“A mulher burguesa não apenas demanda seu próprio pão, mas também busca sustento espiritual e quer desenvolver sua individualidade. É exatamente neste estrato que encontraremos estas trágicas, ainda que psicologicamente interessantes, mulheres, cansadas de viver como bonecas em suas casinhas e que desejam tomar parte no desenvolvimento da cultura moderna. A defesa dos direitos das mulheres burguesas é completamente justificada seja no âmbito econômico como no intelectual e moral”.[xiv] (itálico nosso)
No mesmo texto Zetkin também defendeu que as mulheres da classe média
não são iguais aos homens no que toca a posse de propriedade privada, ainda que sejam parte dos círculos superiores. As mulheres destes círculos têm ainda que conquistar a igualdade econômica em relação aos homens e só o podem fazê-lo mediante duas exigências: a demanda por treinamento profissional e oportunidades de trabalho iguais para ambos os sexos. Esta competição as pressiona para que reivindiquem seus direitos políticos e com eles possam destruir todas as barreiras que foram criadas contra sua atividade econômica [xv]
Há uma distinção importante, observada acima por Zetkin, entre as mulheres burguesas e as de classe média. As mulheres de classe média, como todos desta classe, experimentam uma ampla gama de circunstâncias financeiras, de trabalho e de vida. A classe média alta tem um modo de vida próximo ao da classe dirigente, enquanto a classe média baixa vive em condições muito semelhantes às dos trabalhadores. Assim, as mulheres de classe média podem ser atraídas para distintas direções políticas – algumas gravitando em direção à burguesia e outras se identificando com os interesses dos trabalhadores.
Certamente, Zetkin, em seus escritos visionários de 1896, observou a tendência crescente de proletarização do “trabalho intelectual” que afetaria os acadêmicos e outras profissões, um fator que é ainda mais relevante hoje que nos tempos de Zetkin:
Em meio à intelligentsia burguesa, outra circunstância leva à deterioração das condições de vida: o capitalismo precisa de uma força de trabalho inteligente e cientificamente treinada. Isto, porém, contribui para uma superprodução de trabalhadores intelectuais proletarizados e contribui para que posições sociais que antes eram respeitadas e bem remuneradas venham erodindo continuamente.[xvi]
O início do movimento americano pela libertação das mulheres
O movimento pelo sufrágio das mulheres no início do século XX nos Estados Unidos diferiu um pouco de seus correlatos europeus, mas sua dinâmica foi similar. Enquanto o governo dos Estados Unidos concedeu o “sufrágio universal” aos homens isso não impediu os Estados sulistas de impor as taxas eleitorais de Jim Crow e outras restrições voltadas a negar o voto especificamente aos homens negros.
Assim, a segregação de Jim Crow impôs efetivamente o sufrágio parcial aos homens, negando aos negros dos antigos Estados confederados o direito de votar. Evitando este assunto vital, as sufragistas americanas clamavam pelo “sufrágio universal” às mulheres (ainda que às negras também fosse negado o direito ao voto devido às leis de Jim Crow). A direção branca da National American Woman Suffrage Association (Associação Nacional para o Sufrágio da Mulher Americana), NAWSA, permitiu que as filiadas sulistas praticassem a segregação racial chamando voto unicamente nas brancas.
Contudo, o racismo escancarado não se limitou a episódios no sul do país, como foi demonstrado em uma carta de uma dirigente do NAWSA, Carrie Chapman Catt, a um congressista: “neste momento as mulheres de Nova York são politicamente iguais aos homens, mas as mulheres brancas do sul são politicamente inferiores aos negros”.[xvii]
Mulheres afro-americanas, incluindo Mary Church Terrell e Ida B. Wells-Barnettm, se organizaram pelo sufrágio das mulheres junto à NAWSA, mas antes de tudo através da National Association of Colored Women (Associação Nacional de Mulheres Negras) e o Alpha Suffrage Club (Clube de Sufrágio Alpha). Wells-Barnett teve um papel chave na construção da parada pelo sufrágio das mulheres em 1913, ainda assim foi pedido a ela que caminhasse no final da marcha. Ela respondeu furiosa, “se as mulheres de Illinois não tomarem posição nesta parada democrática, então as mulheres negras estão perdidas”[xviii]
Socialistas americanas e radicais poderiam ter se unido às suas correlatas europeias na luta pelo sufrágio completo para homens e mulheres, a despeito de suas cores ou raças. Infelizmente, isto não aconteceu.
Nos Estados Unidos, no início do século XX, socialistas e outros radicais estiveram frequentemente associados de forma concomitante na anarco-sindicalista “Industrial Workers of the World” (Trabalhadores Industriais do Mundo), IWW, e no Partido Socialista (PS), parte da Segunda Internacional. Ambos, a IWW e o PS, estavam comprometidos com a emancipação das trabalhadoras e ligavam a luta de classes à conquista ao direito das mulheres a controlar a natalidade, contudo discordavam quanto à importância de se conquistar o sufrágio feminino.
Ainda que a IWW fosse declaradamente antirracista, ela recusava se envolver em atividades eleitorais e se opunha terminantemente contra o movimento por sufrágio, o qual considerava “entusiastas ricos do sufrágio feminino”. [xix] A ardente organizadora do IWW, Elizabeth Gurley Flynn, afirmou de forma clara, “para nós a sociedade se movimenta por questões de classe, não sexo”.[xx] Ao mesmo tempo os organizadores da IWW eram francos em lutar pela igualdade das mulheres. A IWW fazia questão de encorajar as mulheres a assumirem papéis de comando nas greves e outras lutas, tendo tido um tremendo sucesso em 1912 na greve têxtil de Lawrence. Flynn argumentava, “A IWW tem sido acusada de pôr as mulheres no “front”. A verdade é que a IWW não mantém as mulheres na retaguarda, e assim elas tomam a dianteira”.[xxi]
Lucy Parsons, viúva de Albert Parsons, mártir da revolta de Haymarket, e uma dirigente radical, enfatizou o poder das mulheres trabalhadoras em seu discurso à conferência de fundação da IWW em 1905:
Nós, mulheres deste país, não votaríamos mesmo que quiséssemos, o único meio de sermos representadas é escolher um homem para fazê-lo. Vocês homens fizeram tamanha bagunça tentando nos representar que nós não temos mais confiança em pedir algo a vocês, e eu tenho o pé atrás em lhes pedir que me representem…
[As mulheres] são as escravas dos escravos. Somos exploradas de forma mais cruel do que são os homens. Sempre que os salários são reduzidos os capitalistas usam as mulheres para fazê-lo; e se há algo que vocês homens deverão fazer no futuro é organizar as mulheres. [xxii]
Em contraste com o boicote da IWW ao movimento por sufrágio, o PS trabalhou em conjunto com as sufragistas – mas sem uma política que desafiasse sistematicamente a sua aderência ao status quo segregacionista. De fato, o PS era dividido entre a ala à esquerda e outra à direita no que tocava a questão crucial da segregação racial. Em sua esquerda, Eugene Debs, talvez o orador mais inspirador do PS, se opunha à segregação racial e se recusava a falar para públicos segregacionistas. À direita, Victor Berger defendia que o socialismo nos EUA e no Canadá só seria possível caso permanecessem países de “homens brancos”. Berger também advertia que se a maré migratória nos Estados Unidos não parasse, “este país certamente virá a ser um país negro-amarelo dentro de algumas gerações”. [xxiii]
Enquanto Debs tendia a evitar debates internos no PS, Berger e a ala direita do partido dominavam o aparato organizacional e através dele exerciam considerável influência na política do PS.
A ala direita do PS apostou suas fichas nas vitórias eleitorais, e via nisso um caminho para conquistar uma sociedade socialista. Depois de alguns debates internos o PS votou pela formação de uma Comissão Nacional da Mulher, em 1908 – incumbida não apenas de supervisionar o trabalho sobre as mulheres, o que incluía o tema do sufrágio, mas também por “organizar o ataque sobre a superioridade dos homens entre os socialistas”.[xxiv] Como ressaltou o historiador, contudo, “as mulheres socialistas parecem ter conduzido a luta por direitos iguais com pouca ajuda dos homens de seu partido”.[xxv]
Boa parte deste trabalho se centrou na educação e assistência às mulheres trabalhadoras para que estas tivessem acesso a métodos contraceptivos confiáveis como um meio de controlar o tamanho das famílias e a gravidez recorrente em condições de pobreza. Historiadores focaram sua atenção no papel pioneiro do movimento por controle de natalidade da então socialista Margaret Sanger, que depois veio a assumir um ponto de vista racista e eugenista.
Mas muitas outras mulheres radicais da IWW e do PS receberam diminuto reconhecimento ainda que tivessem se comprometido durante toda a vida com a luta pelos direitos das mulheres controlarem sua própria vida reprodutiva. Isso em um período no qual até mesmo dar informações sobre contracepção era ilegal; estas ativistas encararam ataques da polícia e a prisão, não abandonando o seu trabalho entre as mulheres.
Antoinette Konikow, uma revolucionária russa que imigrou para os EUA em 1893, dedicou-se a este projeto ao mesmo tempo em que foi central para o movimento socialista americano até sua morte em 1946. Konikow ligava explicitamente o direito das mulheres de controlar sua fertilidade à luta por igualdade das mulheres. Como ela escreveu em 1923 em um panfleto, maternidade voluntária, “as mulheres nunca poderão obter a verdadeira independência ao menos que sua função reprodutiva esteja sob seu próprio controle”.[xxvi] Konikow nunca abandonou esta abordagem, prevendo temas que viriam a emergir no movimento pela libertação das mulheres nos anos 1960.
Os escritórios de Konikow eram regularmente atacados, por isso ela codificava seus arquivos médicos para prevenir que suas pacientes fossem processadas. Uma feminista socialista, Diane Feeley, comentou, “ainda que a grande maioria de suas pacientes fossem imigrantes pobres, sempre que Dra. Konikow era presa alguma mulher rica a punha em liberdade, já que, dadas as leis repressivas de Massachusetts, elas recorrentemente tinham que recorrer à ajuda da revolucionária”.[xxvii]
Como médica, Konikow falava sobre como a universidade deixava os médicos ignorantes sobre o tema dos métodos de controle de natalidade e assim estes eram incapazes de ajudar suas pacientes mulheres que buscavam controlar sua fertilidade. Em resposta ela escreveu o Manual Médico para o Controle de Natalidade, em 1931, no qual estava incluído não apenas uma detalhada discussão sobre anatomia feminina, mas também informações sobre o que ela considerava ser o mais confiável método de controle de natalidade à época, o diafragma com gel espermicida. [xxviii]
O PS também se dedicou a ajudar mulheres grevistas e encorajou-as a se organizarem na American Federation of Labor (Federação Americana do Trabalho), AFL, mesmo quando a federação não aceitava mulheres, negros e imigrantes em sua organização. Neste projeto, as mulheres do PS colaboraram com as sufragistas e mulheres reformistas de classe média, apesar dos fortes atritos entre estes grupos e as mulheres trabalhadoras.[xxix]
A greve das trabalhadoras do vestuário de Nova York de 1909-10 é normalmente lembrada pelos historiadores do trabalho como “o levante dos 20.000”, e envolveu massivamente os imigrantes e a mão de obra de mulheres adolescentes que lutaram incansavelmente até o fim, no qual a maioria das fábricas, ainda que não todas, ganharam reconhecimento sindical e tornaram-se o Local 25 da International Ladies Garment Workers Union (União Internacional dos Trabalhadores do Vestuário de Senhoras).
Quando a greve começou, as grevistas receberam um forte apoio não só do PS, mas também das sufragistas e da Women’s Trade Union League (Liga Sindical das Mulheres), WTUL, organização de mulheres de classe média, vistas como “aliadas” das grevistas. O PS manteve seu comprometimento durante toda a greve. Contudo o interesse das mulheres de classe média diminuiu à medida que a greve se arrastava e as grevistas votaram contra uma proposta de contrato apresentada pela patronal. Uma participante enfurecida do WTUL fez uma proposta de “começar uma campanha contra o socialismo já que o socialismo é uma ameaça… ele apenas faz com que imigrantes ignorantes e descontentes se posicionem contra o governo querendo destruí-lo”.[xxx]
Mas a inspiração destas trabalhadoras do vestuário era profunda. Quando o Partido Socialista organizou a marcha do “Dia das Mulheres” em 1910, a passeata pelas ruas de Nova York foi uma demonstração massiva de solidariedade e consciência de classe entre as mulheres trabalhadoras, incluindo um grande contingente das vestuárias, que apresentavam suas demandas de aumento salarial, melhores condições de trabalho junto à reivindicação de direito ao voto.
O heroísmo das trabalhadoras vestuárias de Nova York inspirou Clara Zetkin a erigir uma resolução, em 1910, na Segunda Conferência Internacional de Mulheres, que declarava o Dia Internacional das Mulheres um feriado anual para os socialistas, uma tradição que continua até os dias de hoje.
Em fevereiro de 1917, as trabalhadoras têxteis em Petrogrado organizaram uma manifestação pelo Dia Internacional das Mulheres sob o tema “contra a guerra, os altos preços e a situação da mulher trabalhadora”, resultando em um movimento grevista massivo que levou à queda do Czar. Este dia se tornou, efetivamente, o primeiro dia da Revolução Russa.
Publicado originalmente em https://isreview.org/issue/93/womens-liberation-marxist-tradition
Tradução: Caio Garrido
Revisão: Paula Farias
Notas
[i] Quoted in Barbara Evans Clements, Bolshevik Feminist: The Life of Aleksandra Kollontai (Bloomington: University of Indiana Press, 1979), 155.
[ii] See Sharon Smith, “Theorizing women’s oppression – Part 1: Domestic labor and women’s oppression,” International Socialist Review 88, March 2013.
[iii] Karl Marx and Frederick Engels, Manifesto of the Communist Party, chapter 1, (1848), https://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/communist-manifesto/ch01.htm(tradução livre)
[iv]Hal Draper, “The Principle of Self-Emancipation in Marx and Engels,” Socialist Register 1971, 81–109, https://www.marxists.org/archive/draper/1971/xx/emancipation.html#f6
[v] Leon Trotsky, “Against Bureaucracy, Progressive And Unprogressive,” Problems of Life (Methuen 1924), https://www.marxists.org/archive/trotsky/1924/xx/bureaucracy.htm
[vi] Richard Stites, The Women’s Liberation Movement in Russia: Feminism, Nihilism and Bolshevism 1860–1930 (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1978), 282.
[vii] Hal Draper and Anne G. Lipow, “Marxist Women versus Bourgeois Feminism,” Socialist Register1976, 179-226. https://www.marxists.org/archive/draper/1976/women/women.html
[viii] August Bebel 1879/1910, Woman and Socialism, chapter
XV, https://www.marxists.org/archive/bebel/1879/woman-socialism/ch15.htm
[ix] Draper and Lipow, op cit
[x] Clara Zetkin, “Social-Democracy & Woman Suffrage” (1906), https://www.marxists.org/archive/zetkin/1906/xx/womansuffrage.htm
[xi] Alix Holt, Selected Writings of Alexandra Kollontai (Westport: Lawrence Hill & Co., 1977), 59.
[xii] Ibid. 126.
[xiii] Clara Zetkin, “Only in Conjunction With the Proletarian Woman Will Socialism Be Victorious,” Speech at the Party Congress of the Social Democratic Party of Germany, Gotha, October 16th, 1896, Berlin, in Philip Foner, ed., Clara Zetkin: Selected Writings, International Publishers, 1984, http://www.marxists.org/archive/zetkin/1896/10/women.htm
[xiv] Ibid.
[xv] Ibid.
[xvi] Ibid.
[xvii] Crista DeLuzio, ed., Women’s Rights: People and Perspectives (ABC-CLIO/Greenwood, 2009), 105.
[viii] Ibid. 106
[xix] Ann Schofield, “Rebel Girls And Union Maids: The Woman Question in the Journals of the AFL and IWW, 1905–1920, Feminist Studies 9, no. 2 (Summer 1983), 338.
[xx] Ibid.
[xxi] Meredith Tax, The Rising of the Women: Feminist Solidarity and Class Conflict, 1880-1917 (University of Illinois Press, 1980), 256.
[xxii] Robin Blackburn, ed., An Unfinished Revolution: Karl Marx and Abraham Lincoln (London: Verso Books, 2011), 251–52.
[xxiii] Ira Kipnis, The American Socialist Movement 1897–1912, Haymarket Books, 2005, 278–79.
[xxiv] Ibid. 268.
[xxv] Ibid. 265.
[xxvi] Diane Feeley, “Antoinette Konikow: Marxist and Feminist,” in Paul LeBlanc, ed., Revolutionary Traditions of American Trotskyism (New York, NY, 1988), 5. Reprinted fromInternational Socialist Review 33 (January 1972), 19–23.
[xxvii] Ibid.
[xxviii] Ibid, 6.
[xxix] See Tax, op cit.
[xxx] Tax, 232