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A propósito das teses de C. Delphy: o esquecimento da reprodução social

Uma reflexão necessária: Para uma teoria geral da exploração

Os artigos da rúbrica Ideias não exprimem necessariamente o ponto de vista da organização mas dos camaradas que intervêm nos debates do movimento operário. Alguns são publicados pela nossa imprensa, outros são resultado dos nossos debates internos, outros ainda são pontos de vista exteriores à nossa organização, que nos parecem úteis.

O último trabalho de Christine Delphy, Para uma teoria geral da exploração, as diferentes formas de extorsão do trabalho hoje, é uma publicação composta de dois artigos: “Por onde atacar a “partilha desigual” do “trabalho doméstico”?” e “Por uma teoria geral da exploração”, ele mesmo dividido em duas partes: “Acabar com a teoria da mais-valia” e “Um novo começo com o pé direito” (disponíveis em acesso livre no site do Cairn). Estes dois artigos foram publicados em 2003 e 2004, um em Mouvements, o outro em Nouvelles Questions féministes.

Tomemos algumas linhas para apresentar Christine Delphy para as e os que não a conhecem (ainda). Christine Delphy é uma figura do movimento das mulheres em França, seja enquanto militante (co-fundadora do MLF, ela participou da primeira ação no túmulo do soldado desconhecido, no lançamento do “Manifeste des 343”, e depois na criação das Gouines rouges), seja como teórica (a sua obra L’Ennemi principal, économie politique du patriarcat, é, independentemente do que se pense sobre a sua substância, uma referência incontornável hoje no pensamento feminista). A figura é aliás suficientemente importante para acabar de sair, enquanto viva, um documentário biográfico: Je ne suis pas féministe, mais, de F. e S. Tissot.  Ela é também socióloga, diretora de pesquisa emérita no CNRS e co-fundadora, junto com Simone de Beauvoir e outros ativistas, da revista Nouvelles Questions féministes, que hoje dirige.

 

O patriarcado, “inimigo principal”

Christine Delphy, enquanto teórica tendo participado de maneira central no surgimento de uma corrente feminista materialista radical, esteve várias vezes em conflito com as feministas da luta de classes. O principal ponto de conflito era e continua sendo a definição de opressão das mulheres e a sua articulação com o sistema capitalista. Para C. Delphy, a opressão das mulheres resulta de um sistema, o patriarcado, que tem uma certa autonomia do sistema capitalista (sem ser independente). Esta opressão estrutura a sociedade em classes, a classe das mulheres e a classe dos homens (sendo entendido que estas classes são construções sociais e nunca dados naturais), como o capitalismo com o patronato e proletariado. Ela postula que a opressão patriarcal é, para a “classe das mulheres”, mais estruturante e omnipresente que a opressão capitalista, e consequentemente, é o patriarcado que constitui o “inimigo principal” do grupo social das mulheres. Ela identifica essencialmente três sistemas d’opressão e exploração: o patriarcado, o capitalismo e o racismo, os três fortemente ligados, e a destruir.

Ela critica as feministas da luta de classes de participar da invisibilização da opressão das mulheres no seio da luta da classe trabalhadora ao recusar admitir uma divergência de interesses entre mulheres e homens, este últimos tendo a perder privilégios materiais no caso da emancipação das mulheres e participando frequentemente de forma activa na sua opressão de  diversas formas (trabalho doméstico, violência…).

Mais ainda que os seus trabalhos anteriores, Pour une théorie générale de l’exploitation, des diferentes formes d’extorsion du travail hoje constitui antes de mais uma resposta às análises e discursos feministas marxistas e luta de classes. É sem dúvida a razão pela qual é apresentada na nossa revista. Não se trata portanto de esquecer que as feministas radicais, pela sua abordagem construtivista, materialista e revolucionária, continuam sendo as nossas aliadas mais próximas no movimento autónomo das mulheres. Esta corrente, muito mais que as outras, combate connosco os discursos essencialistas e o impasse do movimento das mulheres em reivindicações reformistas, institucionalizadas e simbólicas.

Esta recensão – necessariamente parcial – visa então dar a conhecer melhor e compreender certas análises de C. Delphy que podem alimentar as nossas reflexões coletivas, que aderimos ou não. Hoje, devemos nos servir das objecções que nos são feitas para continuar a elaborar e estar prontas/os, também, a uma certa autocrítica construtiva.

 

O trabalho doméstico, para o benefício dos homens

Na primeira parte, “Par où attaquer le “partage inégal” du “travail ménager”?”, C. Delphy retoma um discurso dominante na nossa corrente: a ideia que o trabalho doméstico é efectuado no seio de casa, pelas mulheres (ou seja as esposas e companheiras), para retirar estas tarefas do mercado e, portanto, não remunera-las. A hipótese é que todas/os as/os trabalhadores precisam que determinadas tarefas sejam cumpridas para reproduzir a sua própria força de trabalho e que o capitalismo deveria, se as mulheres não efetuassem este trabalho, remunerar seja pessoas seja serviços estatais via o imposto. E que, portanto, o trabalho doméstico beneficia em primeiro lugar.

C. Delphy desconstrói esta hipótese através do seguinte raciocínio: há uma determinada quantidade de trabalho doméstico a efetuar, e o facto deste trabalho não ser pago é evidentemente uma vantagem.  Mas para quem? O facto de que estas tarefas sejam maioritariamente (a 80%) cumpridas pelas mulheres no seio de casas heterossexuais beneficia o capitalismo?

C. Delphy recusa esta conclusão. Ela sublinha que muitos trabalhadores não têm mulheres para se ocupar da reprodução da sua força de trabalho: os trabalhadores sem esposas, mas também … a grande maioria das trabalhadoras! Estas/es trabalhadoras/es não têm no entanto nenhuma forma de compensação financeira – é mais o contrário para as mulheres – o que coloca mal a ideia que os serviços fornecidos pelas esposas e concubinas seriam, na sua ausência, compensadas pelo capitalismo. Mais ainda, as mulheres em casal heterossexual devem tomar conta não somente a integralidade da sua própria manutenção, mas também uma boa parte da do seu parceiro, e a maior parte da dos seus eventuais filhos/as. Aqui ainda, nenhuma forma de compensação.

Será preciso então bem concluir que o capitalismo não compensaria o trabalho doméstico – uma vez que já não o faz – e que em consequência não é a ele que beneficia este trabalho não pago. Mas sim aos homens em casal heterossexual, uma vez que quando um homem e uma mulher vão viver juntos, o tempo de trabalho doméstico da mulher aumenta e não o do homem; a mulher assume então uma parte do trabalho que o homem deveria fornecer. O capitalismo não compensando o trabalho doméstico, seria o homem quem perderia com uma redução do trabalho doméstico gratuito das mulheres.

C. Delphy critica também o facto que os diversos dispositivos estatais, quer seja no plano da fiscalidade, dos arrendamentos, ou dos serviços, sejam vistos como ajudas às mulheres, quando eles permitem, na prática, manter o status quo do lado dos homens. Ela coloca a hipótese de que estes dispositivos beneficiam os homens, que conservam todas as vantagens sem perder os seus ganhos/salários, nem em tempo de descanso ou lazer, para assumir a sua parte do trabalho doméstico – enquanto a proporção do trabalho feminino não diminui já faz décadas.

Em conclusão, a autora retoma um conceito essencial da sua elaboração: as “classes” de homens e mulheres. Ela coloca em primeiro lugar a divergência de interesses entre homens e mulheres, uma vez que os homens tiram benefício direto do trabalho gratuito das mulheres.

“Os homens, enquanto grupo, extorquem tempo, dinheiro e trabalho à mulheres, graças a múltiplos mecanismos, e é nesta medida que eles constituem uma classe”.

E é o motivo pelo qual elas denunciam a marcha/andamento da maior parte do movimento feminista que consiste em pesquisar um terceiro (mais frequentemente o Estado) que equilibraria as coisas, sem admitir que os homens têm a perder e a renunciar à emancipação das mulheres. “O movimento feminista deve ter a ousadia de dizer que os homens têm demais, ou em todo o caso, mais que a sua parte”.

 

Mais-valia e exploração

Na segunda parte, “Pour une théorie générale de l’exploitation”, “En finir avec la théorie de la plus-value” e “Repartir du bom pied”, C. Delphy volta à noção mesma de exploração. Ela avança com a ideia que a teoria da mais-valia, modelo explicativo da exploração capitalista elaborada por K. Marx, se tornou para as correntes marxistas um totem, uma pedra de toque que agora serviria para validar o que constitui uma exploração e o que não o é. Ela denuncia a redução do conceito de exploração à única exploração capitalista assalariada, assim como a sobrevalorização deste tipo específico de exploração. Com efeito, assumindo que este tipo de exploração seria ontologicamente diferente das outras, alguns/algumas chegariam à conclusão que lhes seria superior – o que justificaria a centralidade da luta ao seu encontro.

A isto, ela opõe vários argumentos. Voltaremos aqui sobre alguns deles.

Primeiro, o facto de que nem toda a exploração é assalariada e não dá lugar a uma extorsão da mais-valia – mesmo se a mesma efetivamente existe. Ela dá aqui o exemplo da escravatura e servidão. Por outro lado, a partir do momento ou há, por exemplo, consumo pessoal pelo explorador e exploração. Esta existe portanto bem.

Depois, o autor coloca-se contra uma autonomização da “economia” que não permitiria dar-se conta do que se joga realmente nas diferentes formas de exploração, tais como relações de forças sociais. A este nível, a explicação das variações (dos salários, das durações de tempo de trabalho segundo a época, os lugares, o género, a “raça”, etc…) por um “elemento moral e histórico” lhe parece insuficiente.

C. Delphy considera que a teoria da mais-valia como modelo total e única modalidade de exploração, não é mais que um “desvio” “do caminho principal”: a propriedade privada, que cria, em todo o lado, as condições de exploração. Longe de rejeitar as análises marxistas, a autora lembra que “a teoria marxista diz que a propriedade privada se apresenta como uma relação com as coisas, quando ela é uma relação com os outros e mais precisamente com o trabalho dos outros”.

Para concluir e abrir algumas perspectivas, deixemos a palavra ao autor:

“A extorsão do trabalho, é a definição de exploração: de toda a exploração.”

“(…) Voltar a uma definição lógica de exploração, é também voltar à problemática primeira do marxismo.”

“(…) Todas as explorações têm pontos comuns, não apenas nos seus resultados – que são justamente exploração – mas também nos seus mecanismos. Não seria difícil fazer um balanço desses mecanismos se, em vez de reivindicar o termo de extorsão do trabalho, nos agarrássemos a estudar todas as formas de extorsão e em abstrair-lhes os princípios: se tivéssemos a ambição de fazer verdadeiramente uma teoria geral da exploração.”

Chloé Moindreau

 

A propósito das teses de Delphy: o esquecimento da reprodução social

No seu último livro, Para uma teoria geral da exploração, Chrstine Delphy ataca abertamente o marxismo, utilizando na sua polémica conceções que atribui ao PCF e à ex LCR. Ela não consagra portanto nem uma linha a discutir as elaborações teóricas que a corrente feminista marxista elaborou ao longo das últimas décadas.

Segundo ela, não é o sistema capitalista mas os homens, em particular os homens casados, que tiram proveito do trabalho das mulheres em casa. Partindo do facto real que as tarefas domésticas estão quase exclusivamente em cima das mulheres, ela conclui que isso constitui a base de um “modo de produção patriarcal ou doméstico” que beneficia a “classe dos homens” (p. 29).

O Estado favoreceria este sistema de exploração ao subsidiar os homens cujas esposas se consagram unicamente às tarefas domésticas, através do “sistema de segurança social (seguro de saúde e reforma), o sistema fiscal e o conjunto das prestações sociais” )p. 59), quando “todo este dinheiro poderia ser empregado a favor da independência económica das mulheres” (p. 48). “Todos estes custos, que representam uma grande parte do famoso “buraco da segurança social, são suportados pelo resto dos/das contribuintes: as mulheres que trabalham em particular pagam uma vez para elas mesmas, uma segunda vez para ajudar a exploração dos outros” (p.48).

 

Quem beneficia das tarefas domésticas?

Um primeiro aspecto a notar é que o conceito de trabalho doméstico utilizado por Christine Delphy se reduz às tarefas de limpeza, a função da mulher na reprodução da espécie nem entra nestas considerações.

As feministas marxistas que, como Lise Vogel, fazem sua a “teoria da reprodução” desenvolveram outra compreensão da opressão das mulheres, fundada sobre o seu papel na procriação e educação das gerações futuras. Para elas, a divisão do trabalho sexual, baseado nos papéis diferentes dos homens e das mulheres no processo de reprodução da espécie, existiu em todas as sociedades mas não determina por si mesmas a opressão das mulheres. O modelo da família nuclear, naquela que o homem assegura a subsistência e a mulher depende dele, foi desenvolvida pela burguesia no século 19 com meio mais económico de garantir a substituição geracional da força de trabalho.

Vogel distingue três aspectos no seio do trabalho doméstico: as atividades quotidianas que permitem aos trabalhadores viverem e trabalharem; a atenção e cuidado dos mais jovens e idosos; a reprodução destinada à substituição dos membros da força de trabalho que morrem ou que param de trabalhar.

Partindo do conceito de trabalho necessário desenvolvido por Marx, ela oferece uma interpretação nova. Para Marx, a jornada de trabalho do operário se divide entre o “trabalho necessário” (o tempo que ele consagra a produzir os seus meios de subsistência) e o “sobre-trabalho” que se apropria do capitalismo. Para Vogel, o trabalho necessário integra duas componentes. Uma, social, é o salário. A outra, que Marx não desenvolve, é constituída do “trabalho não remunerado que contribui com a renovação quotidiana e a longo prazo dos portadores da mercadoria da força de trabalho e da classe operária no seu conjunto. Chamo a isto a componente doméstica do trabalho necessário, ou trabalho doméstico”.

O salário permite ao assalariado comprar as mercadorias que necessita para viver (alimentos, roupa, etc), mas existe um trabalho adicional, não pago, que tem que ser efectuado para preparar a comida, lavar a roupa, se ocupar das crianças, etc. Este trabalho não tem valor em termos marxistas porque não é quantificável, mas ele é indispensável à reprodução social capitalista. Esta definição tem o mérito de demonstrar que o trabalho doméstico enquanto “trabalho não remunerado” é específico do sistema capitalista e, além disso, não específico de um género. Alguém tem que o fazer para complementar o salário do trabalhador. É a ideologia de género que estabelece que são as mulheres e, no seio do sistema capitalista, exclusivamente as das classes subalternas, que são obrigadas a realizá-lo.

Mas a teoria da reprodução social esclarece igualmente o papel conflituoso das mulheres trabalhadoras no terreno da substituição da força de trabalho. Pois elas são não só responsáveis pela reprodução e manutenção da força de trabalho através das tarefas domésticas, mas intervêm também directamente no processo de produção. Deste ponto de vista, elas são para o sistema capitalista uma contradição. A longo prazo, este beneficia do seu papel de reprodutoras da futura força de trabalho. Mas enquanto elas procriam e educam os futuros trabalhadores, elas reduzem o seu contributo como produtoras directas.

Assim, não somente a burguesia se pode apropriar da totalidade da mais-valia potencial que as mulheres trabalhadoras geravam se não estivessem grávidas ou a amamentar, mas ela deve ainda contribuir para a sua subsistência durante esse período “improdutivo” ao longo daquela que ela não pode assegurar também a 100% a manutenção da família. Para fazer baixar esse custo a burguesia privatizou o trabalho doméstico instituindo a ideologia do homem “provedor” de renda, tendo a responsabilidade de cobrir as necessidades da mulher “mãe e esposa” e dos seus descendentes.

É a dependência das mulheres dos homens durante o período da procriação e da educação das crianças pequenas que constitui na sociedade de classe a base material da sua subordinação. O capitalismo obtém assim a substituição da força de trabalho ao menor custo possível, ao se apropriar indirectamente a componente doméstica do trabalho necessário.

 

“Classe dos homens” contra “classe das mulheres”?

Reconhecer, como queria Delphy, a existência de uma classe de homens que expropria uma classe de mulheres, significaria aceitar que a esposa de Carlos Ghosn e a de um trabalhador da Renault pertencem à mesma classe.

Todas as mulheres são oprimidas na sociedade capitalista, porque elas não beneficiam dos mesmos direitos que os homens. É a razão porque é possível, no combate pelos direitos democráticos (direito ao voto, ao aborto, igualdade salarial, etc.),  de construir alianças entre as mulheres de diferentes classes sociais. Mas isso não elimina as diferenças profundas existentes entre as classes. Como dizia uma dirigente feminista boliviana na primeira Conferência Mundial das Mulheres em 1975 no México, em resposta a uma mulher da burguesia que lhe repetia que elas eram iguais: “Senhora, faz uma semana que a conheço. Todas as manhãs, a vejo com roupas diferentes (…) tenho a certeza que vive numa habitação bem elegante, num bairro igualmente elegante (…) Nós, as esposas de mineiros, temos apenas um pequeno alojamento que nos é emprestado. Se o nosso esposo morre, ou fica doente ou é dispensado, temos 90 dias para deixar o lugar e nos encontramos na rua. Então diga-me, senhora: a sua situação tem alguma coisa a ver com a minha? Ou a minha com a sua? De que igualdade vamos falar entre nós, se você e eu não somos parecidas e temos tantas diferenças? Não podemos neste momento ser iguais, mesmo enquanto mulheres – não acha?”

Todos os homens beneficiam da privatização das tarefas domésticas que, se adicionam aos relatos de opressão de género, fazem com que em casa as mulheres trabalhem mais e os homens menos. Mas isso não basta para falar de um antagonismo de classe, pois não há apropriação de mais-valia. Como o explica Cinzia Arruzza, “um homem não perderia nada, em termos de carga de trabalho, se os trabalhos de cuidados e de manutenção fossem igualmente socializadas em vez de serem cumpridas pela sua mulher. Em termos estruturais, não há interesses antagónicos ou inconciliáveis (…) o capitalismo, por outro lado, tem algo a perder na socialização dos meios de produção: não se trata apenas dessas convicções sobre o mercado mundial e o seu lugar dentro dele, mas também dos proveitos massivos que ele expropria alegremente aos trabalhadores.”

 

O paradigma actual da reprodução social

Vimos como, para o sistema capitalista, a família nuclear é a unidade da reprodução social. No seu livro, Delphy estima que “o casal é a única forma de vida aceitável na nossa sociedade” (p. 35), para os heterossexuais como para os homossexuais. É uma afirmação intemporal. Para Delphy, a crise do sistema capitalista não afecta em nada as relações sociais. O capitalismo do século 21 atravessa portanto uma crise sistémica. O processo de manutenção e reprodução da força de trabalho está passando por mudanças estruturais, no quadro dos quais as tarefas domésticas no seu sentido mais amplo (como reprodução da força de trabalho) ocupam um lugar central.

Nas sociedades capitalistas avançadas, a unidade de reprodução social real se afasta cada vez mais do modelo de família nuclear. Em França, mais de 50% das crianças nascem fora do casamento e há 1 760 000 famílias monoparentais, das quais 85% são dirigidas por mulheres. Os subsíduos do Estado que Delphy condena porque libertaria os homens da obrigação de tratar dos cuidados às suas crianças permitem às mulheres de cuidar delas sozinhas, escapando assim de relações abusivas.

Mas isso faz-se a um preço enorme: 31% das casas monoparentais são pobres. E quanto mais as mulheres de família se consagram ao trabalho assalariado a fim de fazer viver a sua família, menor é a qualidade da atenção dada às crianças e ao trabalho doméstico. Ao mesmo tempo, as casas afundadas no desemprego ou no sub emprego permanente vêem a sua marginalização agravar. Em alguns sectores, “a unidade de reprodução social” começa a reproduzir não mais que uma geração de jovens sem os meios que os tornaria “empregáveis” pela burguesia. Sem falar das consequências das migrações de massa, com as separações de pais e a criação de novas unidades de reprodução social no seio das quais se reagrupam os membros de diferentes famílias.

Neste período de crise, as responsabilidades que pesam nos ombros das mulheres são enormes. A questão das tarefas domésticas, consideradas no sentido lato, assim como o papel das mulheres trabalhadoras no seio do processo de reprodução social, são fundamentais não somente para elaborar uma teoria geral da exploração, mas também para começar a indicar a direção na qual se devia comprometer. Precisamos de um novo programa feminista que se dirija a estes milhões de mulheres que suportam a dupla jornada de trabalho, que devem educar as suas crianças sozinhas e sem ajudas adequadas, que experimentam o isolamento da sua família e da sociedade.

Depois de ter lido o livro, compreendemos que não será a Christine Delphy quem contribuirá.

 

Virginia de la Siega

(Tradução do texto original in L’AntiK la revue N°67 (julliet-aout 2015) e/ou em:https://npa2009.org/idees/propos-des-theses-de-c-delphy-loubli-de-la-reproduction-sociale)

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