“irei governar a Câmara procurando abrangência nas decisões que formos tomando, incluindo os partidos da Direita”.
Fernando Medina, 23/10/17
Foi recentemente tornado público o acordo entre o PS e o Bloco de Esquerda para a governação da Câmara Municipal de Lisboa nos próximos quatro anos1. O Movimento Alternativa Socialista, já deixou claro a sua posição: somos contra que a esquerda governe, ou apoie governos, municipais ou nacionais, do PS ou da direita. Estes acordos favorecem a governação em prol dos interesses das classes dominantes, enquanto paralisam a luta da esquerda e dos trabalhadores. Apoiámos Ricardo Robles precisamente por ele se opor não só à direita, mas sobretudo à governação do PS em Lisboa. Em coerência, não podemos apoiar um acordo que significa uma alteração de 180 graus nessa política.
Mas será que é assim? Não será este acordo uma forma de impor ao PS partes do programa da esquerda, na medida das forças eleitorais conquistadas pelo BE? Tememos que seja o oposto: que signifique uma aceitação por parte do BE do programa do PS. A troco de muito pouco ou quase nada. Ora vejamos, ponto-a-ponto.
Educação
Uma das áreas nas quais Ricardo Robles terá responsabilidades executivas, será a educação. Por isso, é nesta área que, na publicitação do acordo, o BE mais salienta as suas “conquistas”. A primeira delas é a gratuitidade dos manuais escolares. Vejamos o que está escrito no acordo:
“Assegurar a gratuitidade dos manuais escolares para os anos do 2º, 3º ciclo e ensino secundário matriculados na escola pública. Esta medida será implementada desde já, para o atual ano letivo de 2017/2018, no que refere aos manuais do 2º e 3º ciclo. No ano letivo de 2018/2019 e seguintes, a gratuitidade estende-se a todos os anos da escolaridade obrigatória, incluindo o secundário. Na medida em que o Estado venha a assumir o financiamento dos manuais, a Câmara Municipal de Lisboa alargará este apoio às fichas de exercícios. “
Não se trata de uma novidade total, mas uma extensão da política do Governo de tornar os manuais escolares gratuitos, primeiro no 1º ciclo, com a perspetiva de abranger os restantes ciclos no futuro. Podemos dizer que a CML assim, se antecipa, esperando que, no futuro “o Estado venha a assumir o financiamento dos manuais”. Não seria uma vitória tão “estrondosa” como apresentada pelo BE, uma vez que se trata de algo que já estava previsto pelo Governo. Mas seria ainda assim, “uma conquista”. Achamos que não. É sabido que as grandes editoras têm na venda de manuais escolares um grande negócio e um dos maiores “lobbys” do país. A política do PS, no país e em Lisboa, ao pagar os manuais, mais não é do que financiar as editoras com dinheiros públicos, alimentado esse lobby e garantindo às editoras um espaço de mercado que estavam a perder, pois parte das famílias deixou de comprar os manuais, por falta de mios. Ou seja, na verdade eles não são “gratuitos”, mas pagos pelos nossos impostos, que deviam ir para outras necessidades, como mais escolas, professores e creches (sim, já lá vamos!). Se o Governo, e CML, quisessem, de facto, manuais gratuitos sem alimentar as editores, seria o estado a editar e publicar os manuais, como serviço público que são e a fomentar um programa de reutilização dos mesmos. Poupava-se dinheiro e garantia-se qualidade. Trata-se então de uma espécie de grande PPP (Parceria Público-Privada) que o PS dizia combater. O BE percebe isso, mas nada diz. Assim adapta-se ao programa do PS neste terreno, em vez de o desmascarar como tinha obrigação.
Outra das bandeiras do BE para este acordo, é a abertura de novas creches. Esta foi de facto uma exigência do BE em campanha – porém não nestes moldes! O que diz o acordo:
“Plano de conceção e construção de novas creches, com abertura de pelo menos 1000 novas vagas (objetivo a eventualmente ampliar no final do 2º ano de mandato). A Câmara Municipal de Lisboa incentivará a criação de cooperativas e outro tipo de associações sem fins lucrativos para a gestão de novas creches”
Mil vagas é bom, mas pouco. Há 8 anos o PS havia prometido a construção de 60 creches, mas construiu apenas 121. Foi Robles quem o denunciou em campanha. Agora não se fala em número de creches mas de vagas. Mas é evidente que as 1000 vagas prometidas ficam aquém das 48 creches que faltavam ainda construir para que o PS cumprisse o que prometeu em 2011. Trata-se, por isso, um recuo face à promessa do PS de há 8 anos. Desta vez, caucionado pelo BE.
Mais grave é que, de alguma forma, a lógica de PPP, também aqui está presente: com dinheiro público são construídas novas creches, mas a CML “incentivará” à gestão feita por cooperativas e “associações sem fins lucrativos”. Tudo indica que se tratará, sobretudo, de IPSS que, na prática, são as principais “associações sem fins lucrativos” que se dedicam a gerir creches no nosso país. Dirão alguns que se trata de uma desconfiança infundada na nossa parte. Resta-nos então perguntar: se é assim porque é a CML há de “incentivar” que sejam organizações privadas a gerir as novas creches, em vez dos serviços da Câmara e/ou do Ministério de Educação?
Resta ainda salientar que o mais importante, o preço da inscrição das crianças nas creches, em nenhum momento é tocado no acordo. Ou seja, não há nenhuma garantia de que as mil novas vagas venham a ter preços reduzidos ou controlados. Pelo que, além de as novas vagas serem insuficientes, as famílias mais pobres e sobretudo aquelas que mais necessitam, as famílias mono-parentais, ou seja, as mulheres, da classe trabalhadora, continuarão excluídas.
E o que dizer sobre a eminente municipalização da educação, que o BE denuncia, e bem, como “absurda e perigosa”?2 O acordo trava ou coloca barreiras ao processo? Pelo contrário, no ponto 8 do acordo diz-se que:
“No caso de se concretizar a descentralização administrativa nos 2º e 3º ciclos do ensino básico e secundário, será garantido financiamento e meios técnicos para a requalificação e reequipamento das escolas sobre as quais o município passe a exercer competências”
Ou seja, aceita-se tacitamente a municipalização do ensino a que o BE se opõe mas que se vai “aprovar com os votos da direita no pós autárquicas”. E quem ficará com o pelouro que irá gerir esse projeto “absurdo e perigoso”? Pois é, adivinharam. Esperamos estar equivocados, mas como diz o povo: “quem avisa, amigo é!”.
Habitação
O combate à subida dos preços das rendas e à especulação imobiliária foi, e bem, uma das bandeiras de Robles e do BE, durante a campanha. Existe algum avanço neste terreno no acordo assinado com o PS? Tememos que não. O acordo estabelece a “a possibilidade ao Município de intervir no mercado imobiliário”, mas como? O acordo estabelece que:
“O Partido Socialista e o Bloco de Esquerda mantêm posições divergentes sobre o financiamento privado do Programa Renda Acessível e preservam a sua autonomia de decisão quanto a esta matéria.”
Ou seja, ainda que mantenha a liberdade de expressar uma opinião oposta, o BE aceita o programa de Medina que foi descrito por Robles como “mais uma PPP”3. “Mais vale pouco que nada”, dirão alguns. Mas será que este modelo ajuda a combater especulação? Tememos que não. Como funciona este programa? O site da CML, explica aos investidores como funciona4. Na secção “Who does what? – buisness model” (não por acaso em Inglês, pois sabemos que é o Capital estrangeiro que tem vindo a alimentar a bolha do imobiliário no país), fica explícito. Ao “parceiro privado caberá” fazer os projetos, “Construir / reabilitar”, “gerir as relações com os inquilinos” e, óbviamente, “coletar as rendas”… durante 35 anos! Já à CML cabe, “fornecer terrenos/edifícios municipais para construção/reabilitação”, “financiar a urbanização estrutural” e “promover a minimização do risco”. Ou seja, o dinheiro que os privados “perdem” ao praticar rendas controladas, é compensado por dinheiros públicos, canalizado pela mão da CML. O facto de, com o acordo Medina-Robles, “O Partido Socialista e o Bloco de Esquerda acordam na criação de um novo pilar no Programa de Renda Acessível, integralmente financiado pelo Município”, mais não significa que a CML, ou outras entidades públicas, funcionarão elas mesmas como investidores privados, alimentando a bolha de especulação em curso.
Assim mantém-se – na verdade, financia-se – a espiral ascendente de especulação imobiliária, continuando a expulsar o grosso da população pobre e trabalhadora (os muitos milhares que não acederão ao Programa) para fora da cidade.
Mais razoável seria tomar pose dos milhares de fogos abandonados, ou deixados vazios pelos bancos e fundos imobiliários, para entregar a trabalhadores de baixos salários e às populações pobres. Assim se travaria a dinâmica especulativa. Mas isso só pode ser feito pelo movimento social. Não com o PS, mas contra o PS. E o Bloco ficou agora em pior posição para fomentar as lutas nesse terreno.
Pressão hoteleira e arrendamento local
Há mais fogo fátuo no que diz respeito ao combate à especulação, nomeadamente no que diz respeito à pressão exercida pela expansão hoteleira e do arrendamento local. Serão aprovados “mapas de quotas” para unidades hoteleiras e alojamento local, por zonas. Mas o “x” da questão é definir que quotas haverá, se altas se reduzidas. Sobre isso o acordo nada diz. Quem decidirá, então? Será ou o executivo, onde os vereadores do PS e da direita formarão uma maioria confortável em prol do lobby hoteleiro ou do alojamento local, ou na Assembleia Municipal, onde o PS tem maioria. Ou seja, no combate à pressão hoteleira fica tudo por assegurar.
Ainda no capítulo do acordo referente ao “património” encontramos outra surpresa: a “Defesa da construção urgente do Hospital de Todos os Santos”. Ora, é sabido que o Hospital de Todos os Santos será construído sob a forma de PPP, o que antes havia merecido a crítica do BE5. Trata-se assim de mais uma PPP que o BE aceita “pela porta do Cavalo”. Em troca é prometida a “salvaguarda do património público da Colina de Santana”, mas em moldes tão gerais que nada deixam assegurado.
Transportes
No capítulo dos transportes públicos, outra das bandeiras da campanha do BE, não há nenhuma conquista a assinalar. Para começar o acordo estabelece que:
“A gratuitidade dos passes sociais para jovens até 18 anos, maiores de 65 e desempregados, proposta pelo Bloco de Esquerda no seu programa não foi objeto de acolhimento pelo Partido Socialista”
Perguntamos: se não foi aceite, porque aparece esta definição no acordo, merecendo a assinatura do BE? Não serve o acordo precisamente para fixar aquilo que ambas as partes aceitam? A menos que fique definido que o Bloco “aceita” que o PS não aceite. A sensação que fica é que o Bloco “aceita” desistir desta bandeira…
Mais grave é o BE apresentar como resultado da sua pressão sobre o PS a “contratação de 200 novos motoristas” e a aquisição de “250 novos autocarros” para a Carris. Ainda que figure no acordo, esta é uma medida apresentada por Medina há vários meses6. Colocar esta medida no acordo feito entre Robles e o Presidente da Câmara mais não é que “areia para os olhos”, para embelezar um acordo em grande medida injustificável.
Precariedade
É a mesma lógica, que só pode ser descrita como “areia para os olhos”, que encontramos neste capítulo falaciosamente chamado “Eliminação da Precariedade na Autarquia”. Neste terreno, PS e BE acordam em:
“Prosseguir o recenseamento dos trabalhadores precários do Município e das entidades do respetivo Setor Empresarial Local até ao final de 2017 e regularização de todas as situações até ao primeiro trimestre de 2018, de acordo com a legislação aprovada pela Assembleia da República para os Municípios Portugueses.”
Ou seja, PS e BE comprometem-se a cumprir… “a legislação aprovada pela Assembleia da República”! Nitidamente não deveria ser necessário um acordo para isso. Como se não bastasse, tudo indica que esta legislação, que resultado no famoso “PREVPAP”, um programa de contratação dos trabalhadores precários do estado, não basta para garantir a “eliminação da precariedade na autarquia”. Não somos nós quem o diz, mas os Precários Inflexíveis, movimento de combate à precariedade intimamente ligado ao BE, quem afirma que:
“A informação foi limitada e muitos precários tiveram dúvidas sobre o processo até ao último momento, ou não sentiram que estavam asseguradas as garantias necessárias para se candidatarem. Em muitos locais de trabalho houve pressão para que os requerimentos não fossem entregues. No caso dos trabalhadores com Contrato Emprego Inserção, em que os dirigentes tinham a responsabilidade de identificar estas situações, verificou-se um silêncio generalizado (por omissão, negligente falta de informação ou mesmo por opção”6
Tão ou mais ambíguo é o ponto do acordo que diz que promete
“uma Estratégia Municipal de Contratação e Apoios Públicos sustentável, económica, social e ambientalmente, que leve em desvalor a contratação de trabalhadores precários pelos adjudicatários”
Segundo o dicionário Priberam, “desvalor” significa “perda de valor”, “perda de estima” ou “cobardia momentânea”. Não sabemos quais das definições melhor se aplica neste caso. Mas é evidente que se houvesse um compromisso de não aceitar “a contratação de trabalhadores precários pelos adjudicatários”, haveria forma de o deixar escrito sem ambiguidades. A formulação encontrada leva-nos a crer que tudo ficará na mesma no combate à precariedade.
Conclusão
Como começamos por assinalar, o acordo feito Robles-Medina mais não é do que a aceitação do programa do PS por parte do BE. O BE aceita assim o essencial do programa de Medina sem nenhuma contrapartida séria que conquista direitos no terreno da educação, da habitação ou no combate à precariedade. Enquanto isso, o BE fica ainda mais comprometido com o PS, arriscando-se a pagar pelos inevitáveis danos que a governação de Medina continuará a causar a quem vive e trabalha em Lisboa. Ou se está com o poder ou na luta, com as populações, os trabalhadores e os movimentos sociais, para conquistar direitos. O BE não conseguirá conciliar as suas coisas. Por isso este acordo causou tanto repúdio entre os militantes bloquistas, sobretudo na cidade de Lisboa. Por isso o MAS, que defendeu o voto no BE e em Ricardo Robles, repudia este acordo e coloca todas as suas forças na organização e mobilização das lutas por direitos laborais, transporte e habitação, onde se podem obter todos os direitos que o acordo Robles-Medina deixa para trás.
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