autoeuropa2

Greve na Autoeuropa: um “test-drive” aos nossos direitos

Talvez seja por ser Agosto, talvez seja a tragédia dos fogos ou início do época de futebol, o conflito e eventual greve na Autoeuropa não têm tido a atenção que mereciam.

Não se trata apenas da primeira greve na maior fábrica do país, responsável por 1% do PIB. Num clima de paz social e crescimento económico irrompe um conflito não só entre a administração e os trabalhadores, mas ainda entre o Sindicato, SITE-Sul e a Comissão de Trabalhadores da empresa, conhecida pelo seu modelo de harmonia entre a patrão e trabalhadores.

Elísio Estanque e Hermes Costa, sociólogos do trabalho, tiveram o mérito de avançar na reflexão sobre o tema, na sua coluna no Público1. Tocam todos os temas essenciais e, por mais respeito que tenha – e tenho! – pelo seu trabalho académico, creio que se equivocam em todos eles. Pego no mote do artigo, o “Test-Drive”, para pontuar algumas diferenças e expor o que considero essencial.

A Administração da Autoeuropa espeta-se no “Test-Drive”

Para os dois sociólogos, o conflito central é entre “dois modus operandi contraditórios”, o da CT – o “diálogo” – e o do sindicato, “ideológico”. Como se o modelo de “uma cultura organizacional marcada pelo diálogo” defendido pelos autores não fosse ele também ideológico, distinguindo-se apenas por ser ideologicamente dominante.  E como se a “conceção sindical da CGTP” não incluísse também muito diálogo e conciliação, como de resto se nota desde o início da “Geringonça”.

Não que não exista uma lamentável guerra entre o SITE e a CT. Mas a origem do conflito está na Administração, isso não pode ser branqueado. Num dos países onde mais horas se trabalham na Europa, a administração de uma empresa que tem lucros gigantescos e foi financiada pelos contribuintes anos a fio quer impor o trabalho obrigatório ao Sábado. Como contrapartida, propõe aos trabalhadores um valor inferior ao que eles recebem hoje caso trabalhem nesse dia!

Para cúmulo, a Administração ameaça com a deslocalização da produção – isto após ter recebido em 2015, 39 milhões de euros do estado. Mas será uma ameaça real ou bluff para chantagear a greve?

O CEO da Volkswagen, falando sobre a Autoeuropa, anunciou ao Observador que “no primeiro trimestre de 2017 (…) a sua margem operacional passou dos 73 milhões de euros registados no mesmo período do ano passado para 869 milhões de euros” e antecipa melhores resultados em 2018, dado que “novos modelos significam não só um aumento da procura, mas também margens mais interessantes.” Como estas perspectivas somadas aos apoios públicos, a deslocalização  soa a bluff.

A Comissão de Trabalhadores derrapou na curva

O “Test-Dive” da CT teve uma importância ainda maior. Para muitos sindicalistas, cansados do modelo burocrático praticado pelas centrais, a CT da AE, e os seus métodos democráticos e conquistas “positivas” (quando comparadas com o resto do país!), era um modelo. Mas a CT esteve mal. Em vários plenários e num abaixo-assinado com mais de 1500 assinaturas, os trabalhadores mostraram ser contra o trabalho ao Sábado. Ainda assim, a CT assinou um pré-acordo que supõe a obrigatoriedade de trabalhar ao Sábado. O acordo foi chumbado por 75% dos trabalhadores. E bem.

A dificuldade de conciliar o trabalho com a vida pessoal e familiar é uma das piores flagelos dos trabalhadores em Portugal. Nós, os milhares que temos de trabalhar Sábados, Domingos ou Feriados, a troco de pouco ou nada, só podemos rever-nos no voto dos operários da AE. O sinal que eles deram é essencial: não estão dispostos a que as suas condições de vida sejam niveladas pelas da maioria, precária e mal paga. É preciso nivelar por cima!

A CT devia ter percebido este sinal. Mas em vez disso demitiu-se e iniciou uma campanha contra a greve, fazendo eco das ameaças da administração. Assim contribuem para dividir os trabalhadores. Superar esta divisão é essencial e mudar de postura poderia ajudar.

Uma greve que merece todo o apoio

Posto isto, o SITE-Sul fez bem em convocar a greve e um plenário. Provavelmente terá intenções também de ganhar espaço e associados, mas essas são intenções legítimas. A questão central não é essa: é como fazer para a greve vencer. A tradição de greves simbólicas, sem organização e mobilização, não é só apanágio da UGT e da CT da AE. Esse método não tem servido. Greves recentes, como a dos estivadores de Lisboa ou da Efacec de Leça do Balio2 dão-nos lições importantes de como vencer. Se a greve avançar e vencer, o exemplo que dá para todos os trabalhadores do país é importantíssimo.

Estamos perante uma grande oportunidade para o movimento sindical. Patrões e governos têm conseguido impor a ideia de que aqueles que lutam – nos transportes, na Função Pública, na estiva – são privilegiados, que não querem trabalhar nas condições da maioria. E, com a ajuda dos media,  isolam as greves e dissuadem aqueles que são ainda mais explorados de lutar. Assim impuseram a lógica de “nivelar por baixo”. Só os miseráveis têm direito a reclamar: da miséria para cima, todo o trabalhador é um privilegiados que deve comer e calar! Vencer esta ladainha é uma questão de vida ou morte para o movimento sindical. Queremos melhor momento para começar?

Esta greve é uma oportunidade para virar o bico ao prego e voltar a defender o direito constitucional à “conciliação da atividade profissional com a vida familiar”. A partir de uma solidariedade ativa com os trabalhadores da Autoeuropa, podemos defender o nivelamento por cima dos direitos dos trabalhadores. De resto, a solidariedade não é só uma possibilidade, mas uma necessidade, para não deixar a a pressão da opinião pública isolar os trabalhadores da AE.

De Bratislava com amor

Deixámos instalar-se a ideia de que as lutas intransigentes são contraproducentes. Há sempre, em tom de ameaça, alguém que relembra alguma fábrica que saiu de Portugal, não devido à ganância dos patrões ou conivência dos governos, mas devido à “intransigência dos sindicatos”. Porém, os trabalhadores da Volkswagen têm um exemplo recente do oposto. A Fábrica de Bratislava da Volkswagen tem 12,300 operários. O salário médio na fábrica é de 1800€ (sem a administração) e no resto do país é 980. Em Junho foi a primeira greve desta fábrica, aberta em 1992. Levou à deslocalização da produção? Não: o salário foi aumentado em 14%, os trabalhadores ganharam um bónus de 500€ e uma folga extra. Participaram 10.000 operários e a greve durou 6 dias.3

O Governo olha para o lado

“Se sabemos que existe a mais alta produtividade e qualidade em Bratislava, eles produzem os carros mais caros de todo a companhia, por que devem os trabalhadores aqui ganhar um terço do deles (alemães), colegas da mesma companhia?” Estas palavras não são de nenhum sindicalista “ideológico”, mas do primeiro-ministro eslovaco, do partido social-democrata “primo” do PS. Infelizmente palavras assim têm faltado por cá. Apesar dos milhões em isenções fiscais e em subsídios dados à Volkswagen, o Governo finge que não tem responsabilidades. Já PCP e BE estão com um pé nas eleições e não se empenharam ainda num forte apoio a esta luta. É preciso mais. Governantes, banqueiros e multinacionais alemães têm tido uma imagem de um país dominado e de um povo obediente. Vamos, também desta vez, dar-lhes razão?

Manuel Afonso

 

NOTAS

1 – https://www.publico.pt/2017/08/11/economia/noticia/um-testdrive-a-autoeuropa-1781959

2 – http://mas.org.pt/index.php/nacional/trabalhadores/1065-greve-dos-trabalhadores-na-efacec-sai-vitoriosa.html

3 – http://www.hindustantimes.com/business-news/volkswagen-slovakia-plant-workers-end-strike-after-winning-wage-hike/story-l8xkUPI7Cq7yJUUaSs46AK.html

Anterior

Em Loures, juntamos forças contra a Xenofobia, por uma cidade 100% à esquerda

Próximo

Loures: uma reflexão sobre o racismo (I)