racismo

Portugal é um país racista?

O Dia Internacional Contra a Discriminação Racial assinala a data do Massacre de Sharpeville na África do Sul. No dia 21 de Março de 1960, sessenta e nove negros foram assassinados pela polícia do Apartheid durante um protesto contra o racismo. Cinquenta e oito anos depois o racismo continua a moldar profundamente a nossa sociedade global, sendo responsável por desigualdades sociais, económicas e violência. Portugal não é diferente. Por aqui, mantêm-se falsos mitos lusotropicais e interculturais promovidos por um Estado que ignora o racismo. Na vida real do país centenas de milhares de pessoas negras, ciganas ou muçulmanas continuam a sofrer racismo diário, institucional ou estrutural. Que este seja um dia que nos faça refletir sobre a atual situação no mundo e nos possibilite pensar nos caminhos da luta anti-racista e contra o ascenso da extrema direita.

Para respondermos à pergunta é necessário começarmos por compreender o que é o Racismo. O Racismo é uma estrutura política e ideológica de opressão – que provoca desigualdades socioeconómicas e simbólicas baseadas em diferenças étnico-raciais – de forma a manter o poder.

Ao contrário do que nos querem muitas vezes fazer acreditar, discriminação e preconceito não são o mesmo que Racismo. Racismo é um sistema histórico alicerçado no colonialismo e, como referiu Malcom X, não se pode ter capitalismo sem Racismo. O Racismo é mais que preconceito, é ter o poder para utilizar esse preconceito para oprimir estruturalmente. O Racismo institucional, uma das formas mais problemáticas, é aquele que se expressa nas práticas das instituições do Estado, Empresas, entre outras. O Racismo não é fruto do desconhecimento, pelo contrário, é um conjunto de ideias que foi bem teorizado ao longo dos séculos XIX e XX e das quais ainda não nos livrámos. O Racismo é uma realidade global com alicerces comuns e exprime-se de diversas formas pelo mundo. Portugal não é, com certeza, exceção.

Portugal foi um dos grandes percursores da Escravatura moderna, que durante mais de quatro séculos arrancou milhões e milhões de negros de África, numa escala nunca antes vista. Portugal só aboliu a Escravatura em 1878 quando esta foi proibida nas colónias. Isto aconteceu quase cem anos depois da sua abolição na revolução negra haitiana, uma das mais importantes de sempre, como descreveu C.L.R. James. No entanto, o colonialismo português substituiu a Escravatura por trabalhos forçados durante décadas. Em Portugal perseguiram-se durante séculos negros, ciganos, judeus e muçulmanos. Por exemplo, os ciganos foram deportados, presos, punidos em público e condenados à morte em vários momentos da história portuguesa, proibidos de falar a sua língua, usar as suas vestes e foram-lhes retirados os filhos. Portugal foi também o último país a descolonizar África – para a memória ficarão a Guerra Colonial ou as grandes fomes de Cabo Verde. Durante as Lutas de Libertação, Portugal foi responsável pela destruição social e económica desses países e pela morte de milhares de pessoas, donde os massacres de Pijiguiti e Wiriyamu ficarão como enormes feridas. Este é um fardo que os países libertados carregam até hoje.

Já falámos do passado, mas será que no presente ainda existe Racismo em Portugal?

O primeiro exemplo do Racismo no país é a sua constante negação ou desvalorização. A ideia de que aqui existe menos Racismo que noutros lugares, está alicerçada na ideia de um país de “brandos colonialismos”. As falsas ideias do lusotropicalismo estão impregnadas na nossa sociedade, nomeadamente nas nossas instituições.

Vivemos num país onde afrodescendentes que cá nasceram, cresceram e tiveram filhos continuam a não ter nacionalidade portuguesa, mas filhos de portugueses brancos de terceira geração pelo mundo podem-na ter automaticamente.

Por outro lado, o Estado português continua a não querer publicar dados fidedignos sobre as condições sociais de negras e ciganas no país. Na verdade, é negado aos negros e ciganos saberem quantos são e principalmente como vivem.

Na justiça, a situação não é melhor: temos 20 anos de legislação contra o Racismo mas os resultados são muito desanimadores. O número de queixas é irrisório e durante todo este tempo houve apenas 20 condenações por contra-ordenações racistas.

Na educação, o cenário é também mau: existem casos recorrentes de turmas ciganas segregadas e os estudos de Cristina Roldão e Pedro Abrantes concluem que as crianças afrodescendentes chumbam três vezes mais no primeiro ciclo e que 80% dos afrodescendentes são encaminhados para vias profissionalizantes.

Na escola, ensina-se uma história mitómana e falsa de um país de brancos que “descobriu o mundo” já descoberto, ou de um povo de brandos costumes, mas onde os ciganos e os negros não têm lugar. De facto, ciganos e negros têm uma influente e silenciada presença social, cultural e económica durante os últimos cinco séculos em Portugal. Atualmente até existe um revisionismo histórico no ensino sobre a Guerra Colonial.

Na habitação, a segregação urbana salta-nos à vista: todos conhecemos bairros  de maioria negra ou cigana distantes e isolados dos serviços e dos transportes. Negros e ciganos vivem invariavelmente nas franjas mais pobres das cidades e o Plano Especial de Realojamento (PER) foi em grande medida uma desilusão. Existem bairros auto-construídos a quem é negada água e luz. E, nos últimos anos, em bairros como o Seis de Maio, Estrela D’África ou Reboleira as autoridades têm demolido casas sem terem solução habitacional para as famílias.

O lado mais brutal do Racismo no país são as práticas das forças de segurança. Os acontecimentos da esquadra de Alfragide de violência racista contra os jovens da Cova da Moura é a demonstração de como a polícia atua frequentemente. Nesta situação específica, houve rapto, espancamento, tortura e injúrias racistas que levou a uma inédita acusação por parte do Ministério Público contra todos os agentes da esquadra. O que ali aconteceu, não foi excecional, é um episódio que se repete demasiadas vezes.  As famílias de Kuku, Snake, Musso, Angoi, Tony, Teti ou PTP – todos jovens negros e todos mortos pela polícia em situações duvidosas – nunca viram a justiça ser feita. A vigilância, brutalidade e impunidade policial nos bairros pobres de maioria negra e cigana em Portugal são a demonstração da atuação do Estado sobre estas populações e a evidência do Racismo institucional. Na verdade, o Racismo institucional expande-se para a educação e outras estruturas da sociedade como têm relevado os estudos de Silvia Maeso e Marta Araújo.

Podemos então regressar à questão inicial. Portugal é um país racista? Portugal é um país muito racista, demasiadamente racista.

É necessária uma outra lei da nacionalidade que permita a todas e todos os que aqui nasçam o direito à nacionalidade portuguesa. É precisa a condenação exemplar e efetiva dos polícias da esquadra de Alfragide e de todos os envolvidos em casos semelhantes. É fundamental que o Estado faça uma recolha abrangente e constante de dados de igualdade sobre as questões raciais. É necessário iniciar um debate sobre cotas étnico-raciais no país. É preciso mudar a forma como se reproduz uma falsa história portuguesa nas escolas. É uma emergência acabar com as demolições de casas de pessoas que não têm para onde ir. É preciso acabar com as mortes no mediterrâneo e dar condições a todos os refugiados que estão a fugir da miséria e da guerra.

As lutas antirracistas e anticoloniais foram e continuam a ser uma referência para todos os trabalhadores do mundo. Do Quilombo dos Palmares à Revolução Haitiana; do Gueto de Varsóvia à independência da Argélia; das lutas de libertação africanas, asiáticas e caribenhas ao movimento afro-americano pelos direitos civis; do combate contra o Apartheid Sul-Africano à Palestina; das revoltas dos jovens de Paris ao movimento Black Lives Matter. Como disse o revolucionário argentino Nahuel Moreno, a Revolução portuguesa foi fruto das Lutas de Libertação Africana, uma revolução anticolonial que se transformou numa revolução socialista. Teóricos, ativistas e guerrilheiros africanos influenciaram de forma fundamental o que aconteceu na Guiné-Bissau, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Portugal. Hoje vemos despontar uma nova geração negra e cigana de esquerda em Portugal que exige os seus direitos na sociedade, que reflete e teoriza, que se representa e reivindica, que combate e avança contra o Racismo.

 

Pedro Varela

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