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A importância da tradição

Por que estamos recordando e rendendo homenagens a Moreno nesses trinta anos de sua morte? Muitos jovens e quadros do MES/PSOL podem legitimamente perguntar-se isso.

Como é relatado na crônica deste boletim especial, o MES realizou dois atos no Brasil para recordar seu legado, como parte do que tem sido feito em outros países. Foi uma importante iniciativa que teve como motores Israel Dutra, Roberto Robaina e Leandro Fontes, organizador deste boletim. Em ambos os atos estiveram presentes companheiros do PSTU, MAIS e CST. Recebemos calorosas saudações de Nora Ciapponi (da Argentina), Carlos Maradona (do já histórico MST da Argentina), Gonzalo (Marea Socialista, da Venezuela) e Tito Prado (MPGT do Peru), cujos textos estão neste boletim. Com essas homenagens e aquela que o MST fez na Argentina em 27 de janeiro, teremos cumprido nossa parte para manter Moreno e sua tradição vivos.

 

A tradição é indispensável e fundamental para construir seja uma corrente, como o MES, ou um partido revolucionário, como foi o MAS e agora é o MST da Argentina. Não existimos sem ela, seja mais recente ou mais longa. É a memória acumulada da teoria e ação, ou seja, a práxis do que foram fazendo ao longo do tempo os militantes, construtores e dirigentes. A práxis é mais do que a história escrita e a teoria porque a ação também é sensorial. A memória é também um acúmulo de moral militante através de recordações, anedotas, feitos parciais, vivências que se tem e levam consigo quem luta pelo socialismo, explicando-se pelo pensamento mas sentindo-se no coração que nos move a pensar e militar.

Essa tradição é como uma cadeia formada por ligações que têm um ponto de partida ao qual vão agregando-se novos; essa tradição vai se construindo no dia a dia que vamos forjando como coletivo humano. Assim se forma uma grande retaguarda, uma sustentação em que se apoia nossa razão de ser, nossa ação de todos os dias e dos que virão. Somos todos parte desse coletivo que jovens e velhos vão herdando. Nos permite encarar o futuro com mais sabedoria, confiança, energia e paixão. Ora, a tradição possui pessoas de carne e osso, nossos mestres com quem demos os primeiros de muitos passos, e em nosso caso o mais importante é Nahuel Moreno.

O MES é parte dessa tradição. Possui 18 anos; portanto, é ainda jovem. Apesar disso, Luciana e Roberto tiveram a oportunidade de conhecer Moreno e fazer uma reunião com ele, quando ainda na casa dos 18 anos militavam na Convergência Socialista, uma corrente do PT que na década de 1980, ao lado do MAS, era uma das organizações mais importantes de nossa corrente.

Nahuel Moreno era o nome de guerra de Hugo Bressano, o mais importante mestre de nossa corrente internacional que faleceu há trinta anos em sua casa em Morón, na região metropolitana de Buenos Aires, quando seu coração deixou de funcionar. Era jovem, tinha 62 anos, mas seu coração estava há muitos anos cansado, com problemas. Eram anos em que não contava-se com a moderna ciência e tecnologia cardíaca. Um mês antes havia voltado de uma viagem pela Inglaterra e Itália – pelo que me parece, isso acelerou sua situação.

Sua morte é uma grande injustiça. Muita coisa poderia ser diferente se seguisse com vida. Ele estava angustiado pela sua saúde mas seguia ativo produzindo muito. Em seus últimos meses levantava hipóteses sobre as mediações que estavam ocorrendo na Argentina a propósito do triunfo do peronismo nas eleições de Buenos Aires. Esse triunfo esmagador punha em questão nosso prognóstico de uma nova fase ininterrupta da revolução – depois da revolução democrática que liquidou a ditadura, haveria uma outra, que seria social. Esforçava-se para fazer uma caracterização do reaganismo, sendo autocrítico por não ter dado a devida importância à derrota da greve dos mineiros ingleses que fortaleceu Thatcher.

Nahuel significa “tigre” em araucano, e agregaram “Moreno” pela cor de seu cabelo mas também por causa de Mariano Moreno, um dos líderes jacobinos da revolução pela independência da Argentina, responsável por fuzilar com seu grupo o vice-rei espanhol que tentou fugir para Córdoba. Assim o batizou Quebracho /1/ no início dos anos 1940.

Com Moreno, o Trotskismo latino-americano protagonizou grandes lutas e construiu importantes partidos. É a corrente que teve e tem (apesar das fragmentações posteriores a sua morte) a maior presença no continente. Milhares de nós nos consideramos legitimamente seus seguidores, e assim temos hoje diferenças em nossas leituras políticas e métodos de construção. E apesar de militarmos em partidos e organizações diferentes, todos reivindicamos sua trajetória. Ninguém pode negar esse direito aos outros e reivindicar para si a paternidade de Moreno. Há coisas que permanecem para sempre para além das diferenças que existem no interior de uma tradição comum.

Há duas formas de desviar-se da tradição. Como recordou Valerio Arcary no ato de homenagem em São Paulo, “temos que saber fazer nossas homenagens.” E dizia que uma das formas de não fazê-lo é transformar um dirigente e sua obra em um culto à personalidade. Isso foi levado ao máximo pelo estalinismo com Lenin, e para tanto tiveram até de deformar sua história.

Em nosso caso, muito longe disso. Somos críticos e autocríticos, e desde 1998 reconhecemos erros importantes, especialmente a formulação sobre a situação revolucionária mundial e a iminência da revolução. Não nos aprofundaremos sobre isso neste texto porque essas ideias que elaboramos no MES, principalmente com Roberto Robaina e os aportes de Tito Prado do Peru, e em seguida o MST da Argentina e os companheiros venezuelanos do Marea Socialista, são sinteticamente desenvolvidas em um texto que produzimos por ocasião dos 20 anos da morte de Moreno.

Existem organizações que romperam com sua tradição e com isso perderam o norte. Tive a oportunidade de acompanhar com Hugo as reuniões com o SWP dos EUA, quando formamos com os herdeiros de Cannon (um dos mais importantes dirigentes da oposição de esquerda durante a vida de Trotsky) a tendência e em seguida fração “leninista-trotskista”. Estávamos convergindo com eles, enfrentando a orientação guerrilherista que a direção majoritária da IV Internacional, encabeçada por Mandel e Livio Maitan, postulava para a América Latina. O SWP era um partido forte, forjado em uma longa tradição, que havia ganhado muitos quadros e dirigentes nos anos 1970 na luta contra a Guerra do Vietnã e no movimento pela libertação da mulher.

Ainda estavam com vida velhos dirigentes da velha guarda de Cannon, entre eles Farrel Dobs (dirigente da greve dos caminhoneiros de Minneapolis em 1938), Tom Kerry, da mesma geração, além de Hansen (um dos secretários de Trotsky) e George Novack, conhecido historiador e filósofo militante. Com Moreno nos demos conta de que a nova direção mantinha Farrel Dobs e Tom Kerry na tarefa de organizar a livraria – eles não participavam das reuniões entre nós e a CE do SWP. Tampouco Gerge Novack. Moreno então chegou a essa conclusão: “estão desprezando os velhos e vão romper com uma tradição histórica, a mais importante da última década de vida de Trotsky.”

E assim aconteceu: algum tempo depois estavam apoiando incondicionalmente a direção de Castro e transformando-se em apêndice do partido cubano. O histórico SWP está agora reduzido a nada, o que mostra que não se pode fazer uma mudança brusca de envergadura sem romper com a tradição.

Temos exemplos de que a ruptura com a tradição leva a um desvio de outro tipo, e esse é o caso do PTS argentino. Por meio da direção do MAS, cometemos com eles excessos fracionais quando romperam, época em que Moreno já havia morrido. Talvez esse excesso tenha a ver com um peso herdado pelo conjunto do trotskismo, que por situações objetivas e pela sua debilidade, teve sempre características de partido-fração.

Entretanto, esse excesso não explica o que se sucedeu como PTS, que tem passado a negar o morenismo, nossa história e sua própria. Em poucas palavras, eles a tem apagado, atacando nossa história política. Seu maior ataque é considerar que capitulamos para a democracia burguesa em um dos momentos mais difíceis e heroicos do partido, quando chegou ao auge a Triplo A (Aliança Anticomunista da Argentina), que era um grupo militar dirigido pelo próprio governo. A Triplo A assassinou vinte de nossos companheiros, dentre os quais Cesar Robles, um de nossos principais dirigentes. Sofremos o massacre de La Plata, em que mataram oito, e a de Pacheco, onde mataram três. Nos acusam de termos capitulado à democracia burguesa porque levamos adiante a política de unidade de ação com partidos burgueses para nos defendermos da Triplo A. Se esquecem de que durante a homenagem aos mártires do massacre de Pacheco, Nahuel Moreno defendeu a necessidade de formar grupos de autodefesa, pleiteando uma reunião com todas as organizações presentes. Nem os fortes grupos guerrilheiros e nem o resto da esquerda quis participar.

A tentativa de unidade de ação com os partidos burgueses era uma tática necessária que fazíamos sem abandonar nem por um minuto a luta de classes. Seria bom se recordassem a histórica greve dos metalúrgicos de Villa Constitución, em que o PTS, com Pacho Suarez e Pepe Kalauz e vários outros militantes e dirigentes partidários que estivemos empenhados no conflito, pudemos manter a heroica greve por dois meses, rodeados pelos fascistas da Triplo A.

Romper com a tradição e revisar toda a história como se tem feito pode levar à degeneração reformista (como no caso do SWP) ou ao perigo sectário e propagandista. É impossível não ter uma retaguarda concreta – nenhuma organização política nasce de “um repolho”. Não se pode tampouco ter uma retaguarda “abstrata” no trotskismo como teoria. Aqueles que pensam assim vão acabar considerando que eles são os únicos verdadeiros revolucionários, e vão formar seus militantes como se tudo tivesse começado com eles porque são os únicos e verdadeiros herdeiros de Trotsky.

É impossível ser trotskista na Europa continental ignorando a IV de carne e osso, a que resistiu ao nazismo e que se confunde com a trajetória de Mandel, o qual escapou duas vezes dos campos de concentração nazistas, ou sem levar em conta o papel desempenhado por Krivine e Bensaid no maio francês de 1968. Já na Inglaterra, é incontornável rememorar Ted Grant, Alan Woods, Tony Cliff e as históricas jornadas de enfrentamento com Thatcher, quando dirigiam o Partido Trabalhista na prefeitura de Liverpool. E é impossível ser trotskista na América Latina, ignorando toda a acúmulo do morenismo no pós-guerra, a história do PST e do MAS na Argentina, da Convergência Socialista no Brasil, de Hugo Blanco e o PST no Peru.

Há outro desvio que é muito forte no trotskismo em geral e no morenismo em particular. É crer que tudo o foi feito esteve bem; não haveria nada em Moreno tenha se equivocado, “Moreno teve razão em todas as polêmicas, todos os prognósticos coincidiram com a realidade e nunca cometeu erros na política”. Esta forma de pensar contradiz o próprio Moreno, o qual, quando fazia a história do partido nos anos 60-70, dizia que era preciso elaborá-la com base nos erros. O desvio obrerista até 1947 que levou o GOM a ignorar a juventude e o estudantado. Quando se corrigiu este equívoco, foi-se às universidades e captou-se uma camada de jovens que foram muito importantes na direção (Horacio Lagar, Ernesto Gonzalez, o próprio Hugo Blanco que estudava agronomia em La Plata e que depois foi trabalhar no setor frigorífico, para em seguida participar da revolução agrária no Peru). Houve também o desvio sectário que  não enxergava que o peronismo, embora fosse um movimento de direção burguesa, enfrentava o imperialismo estadunidense e para tanto precisava fazer grandes concessões para a classe trabalhadora. Isso foi corrigido e dentro das organizações operárias peronistas foi possível desempenhar um papel muito destacado na resistência da ditadura pró-ianque, ainda que isso tenha levado a um certo desvio sindicalista e movimentista. Acreditar que tudo ocorreu bem na nossa história é uma forma de apagar a verdadeira história. Se tudo foi correto antes, tudo também é agora. Cria-se uma conduta que perde um dos elementos essenciais do marxismo revolucionário, o espírito crítico, e também pode-se tergiversar essa história. Por exemplo, escutei no Brasil que há companheiros morenistas os quais dizem que Moreno sempre teve a política de apresentar-se com o partido revolucionário sozinho nas eleições. Assim deixa-se de lado que fomos parte na Argentina do PSRN de Dickman, dirigindo a Federação bonarense de referido partido, que estivemos dentro do peronismo e que nos apresentamos com eles nas eleições. Há que se recordar que com essa política formamos um bloco de deputados operários na Federação das Usinas Açucareiras (FOTIA) em Tucumán e tivemos um deputado da Palabra Obrera. Mais tarde, em 1985 com Moreno ainda em vida, fizemos a “Frente do Povo” com Partido Comunista Argentino. Mesmo que involuntariamente, esta política de se isolar nos leva a criar uma homogeneidade no interior da organização e a pensar que quem pensa diferente está equivocado e deve-se separá-lo.

Mais ainda é fazer com as caracterizações e políticas de Moreno a leitura da realidade atual. Moreno morreu há 30 anos, é quase toda uma época, o mundo mudou. As revoluções políticas na ex-URSS e nos países do Leste não se deram como esperávamos; houve derrota do aparato stalinista, mas também restauração do capitalismo. Houve uma revolução tecnológica e nas comunicações (as quais Moreno especulou e dizia que nesse caso a situação se modificaria) e entramos na globalização neoliberal e numa nova crise do capitalismo. É impossível fazer a leitura desta realidade com as análises, caracterizações e política de Moreno. Quem o faz (e se o faz) leva um pensamento de seita ou ao propagandismo de ter a verdade absoluta, que Moreno combatia. Moreno dizia: “Ser trotskista hoje não significa estar de acordo com tudo aquilo que escreveu ou o que disse Trotsky, mas sim saber fazer-lhe críticas ou superá-lo, como a Marx, a Engels ou Lênin, porque o marxismo pretende ser científico e a ciência ensina que não há verdades absolutas. Em primeiro lugar, ser trotskista é ser crítico, inclusive ao próprio trotskismo”.

Por isso, o MES e nossa corrente está viva, aproximando-se com dificuldades à realidade, mas nos aproximando. Porque tentamos ter um espírito crítico de superação sem por isso perder as marcas essenciais mais importantes do Morenismo: a paixão pela classe operária; a luta irredutível contra a burguesia e a burocracia que nos dá nossa perspectiva socialista; o internacionalismo militante; a intransigência nos princípios e a flexibilidade na tática para fazer avançar o movimento de massas intervindo nos processos objetivos e fazer com isso a construção do partido.

Não se pode concluir este texto sobre a tradição sem esboçar as perspectivas futuras. No dia em que homenageamos Moreno depois de sua morte /2/ toda a força e energia herdada esteve posta em manter com destaque suas marcas fundamentais, manter a paixão militante que tínhamos de transmitir.

Acreditamos que um elemento importante da dispersão do morenismo é que demoramos muito em ver os erros que tinha a caracterização de Moreno da situação revolucionária mundial. Continuamos por bastante tempo repetindo caracterizações que nos levaram a errar muito mais que Moreno e que produziram uma dispersão de sua corrente. Como dizíamos antes, o rearmamento não foi fácil e o fizemos de maneira desigual.

Porém, conservamos suas marcas, herdamos muito dele. Acreditamos que agora com seu talento e moral revolucionária estaríamos mais fortes; os desafios que temos nos exigem conservar suas marcas e ao mesmo tempo avançar. O mundo está convulsionado, há uma grande crise do capitalismo sem que se afirme todavia a única saída possível que é o socialismo. No entanto, novos processos se dão, ainda que sejam embrionários e intermediários, facilitando o trabalho de criar novas alternativas socialistas. É verdade que apareceram nuvens negras e perigosas como Trump, mas também é verdade que um dos grandes sonhos de Moreno e do trotskismo, a entrada da crise e com ela a entrada em cena das massas do país mais imperialista mais importante está se dando. Nos EUA, está Trump, mas também está a grande resistência democrática popular onde brotam e reaparecem as ideias socialistas.

 

Pedro Fuentes – MES-PSOL, Brasil

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