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Após o ano da Geringonça, começar 2017 com o pé esquerdo

Portugal, como muitas vezes acontece na nossa História, parece viver numa bolha isolada do mundo. 2016 foi o ano da vitória de Trump, da ousadia de Putin, do massacre de Aleppo, da crise dos refugiados: o inaugurar de uma nova era dos extremos. Por cá, em 2016, o centro político restabeleceu-se.

A estabilidade foi alcançada e a fé no sistema político, conjunturalmente, restabelecida. 2016 foi o ano de graça da Geringonça e de Marcelo Rebelo de Sousa. A vitória de Marcelo, o seu estilo hipercativo e a sua política consensualista, repuseram a força do “extremo centro” político assente em PS e PSD, na obsessão do défice e subserviência a Bruxelas. António Costa, embalado pelo seu optimismo falsamente social-democrata não faltou à chamada, e ajudado por BE e PCP, salvou o PS da crise em que caem os seus partidos irmãos por toda a Europa. A existência da Geringonça a anulou a existência de oposição: a esquerda passou a integrar o arco de governo e a direita ofendida a sem espaço político resume-se a esperar pelo “diabo”, ou pela saída de Passos Coelho, para se poder renovar. A chamada devolução de rendimentos ficou aquém das necessidades, assim como das possibilidades. Perante o aumento dos preços, das rendas e o endividamento das famílias, não melhorou o nível de vida. As mudanças centrais impostas pela troika à estrutura económica do país e à vida dos trabalhadores não sofrem nem sofrerão alteração às mãos do PS. Porém, “enquanto o pau vai-e-vem, folgam as costas”. E na necessidade de ter fé em algo, trabalhadores e jovens apegam-se ao mal menor da geringonça.

Porém este estado de graça não será eterno. A crise bancária, nacional e europeia, os conflitos internacionais e as contingências da austeridade farão balançar o barco. E 2016 mostra-nos que a direita não tem dificuldades em ser audaz para aproveitar o descrédito de governos que desiludem a sua base social ou surfar a indignação gerada pelas pressões austeritárias de Bruxelas. Estará a esquerda preparada para as perigosas esquinas da história que se avizinham? Será sensato colocar todas as fichas na Geringonça, na estratégia de empurrar para a esquerda um governo que, cedo ou tarde, vai atolar-se ao centro e pender para a direita? 2016 foi o ano em que a esquerda nacional, pelo menos os seus grandes representantes, BE, PCP e CGTP, deixaram de ter uma estratégia de futuro. Acomodaram-se a viver para o amanhã: para a próxima medida parlamentar, para a próxima polémica nos jornais, para o próximo elogio ao PS, sempre seguido de alguma crítica artificialmente “dura” que cada vez convence menos.

A classe dominante não está a dormir. Tem em Costa um representante moderado, ainda que preso ao “empecilho” da geringonça, e em Passos um outro empecilho a resolver, no entanto ela move-se. As mais recentes negociações da Concertação Social, em que a migalha do aumento mínimo do salário foi transformada numa côdea para os trabalhadores roerem, são exemplificativas. A CIP e a burguesia, patrocinados por Marcelo e com a aceitação do governo, fizeram o trabalho de casa: disputaram, regatearam e pressionaram. A esquerda descansou à sombra da Geringonça: baixou as suas linhas vermelhas, não saiu à rua e confiou no governo. A passa, essa, saiu aos trabalhadores. Este cenário vai repetir-se em 2017 e, acomodados como estão, BE, PCP e CGTP, arriscam-se a acordar quando já for tarde mais.

2017 deve ser por isso momento de virar o bico a este prego. Portugal não existe fora do mundo e a nova era dos extremos que nos entra pelo telejornal, em breve entrará pela porta de casa e do trabalho. Nesse momento será tarde de mais para nos prepararmos: as guerras de amanhã vencem-se hoje. Por isso é necessário reconstruir um polo de oposição de esquerda ao governo. Seja no campo político, seja no campo sindical. A CGTP retirou-se de cena em 2016 – a recente desconvocação da greve do handling com base em promessas do governo é disso sinal – e a UGT parece mais moderada que o governo. No entanto nas empresas tudo está como antes e cada vez mais activistas e dirigentes sindicais se indagam sobre o que fazer. É necessário unir na acção e no debate sindicatos, comissões de trabalhadores e sindicalistas que queiram reconstruir uma estratégia de luta, democracia e de independência face ao governo.

Mas a resposta não pode ser meramente sindical: é preciso demonstrar aos trabalhadores que existe alternativa política para o país para lá da direita e da Geringonça. Que é possível subir salários e criar emprego rompendo com o euro e com as regras da União Europeia. Que é possível unir dos debaixo, contra os patrões, se combatermos o machismo e o racismo e levantarmos as bandeiras dos trabalhadores mais oprimidos. Por isso a par com a maior unidade de acção nas lutas sindicais, é necessário apoiar as lutas dos seus sectores mais oprimidos. 2017 é o ano para se apostar na campanha unitária pela alteração da lei da nacionalidade, que tanto afecta trabalhadores e jovens negros, assim como na preparação de uma grande manifestação no dia 8 de março, que mobilize as trabalhadoras e jovens, de forma independente do governo. Não deixar que seja o PS a apropriar-se destas causas é essencial – como tentou este ano na Marcha de Orgulho Gay e na Manifestação contra a Violência sobre a Mulher – pois essa é a estratégia do governo para controlar esses sectores.

O desafio mais essencial para a esquerda em 2017 é o de construir uma nova mensagem. Demonstrar que é possível governar sem os partidos que afundaram o país, a direita e o PS. É preciso dizer quem diga bem alto que cabe ao Bloco de Esquerda e ao PCP rejeitar a aliança com António Costa e disputarem um verdadeiro governo unitário e de esquerda.

Para isso é preciso abrir os canais de discussão e de acção conjunta entre aqueles que fora de BE e PCP ou entre as fileiras destes partidos, partilham da necessidade de abrir um novo rumo à esquerda. Essa é uma tarefa essencial para 2017. Para que seja o ano em que volta a haver uma esquerda com peso, independente do governo, que possa combater a direita e o PS. Por fim, sendo o centenário da Revolução Russa, num momento em que a crise capitalista volta a expressar-se das mais diversas formas, há que aproveitar para reabrir um debate mais estratégico à esquerda. Um debate entre os que se reivindicam da revolução russa, mas se considera opostos ao estalinismo e à deformação burocrática que marcou a maior parte da vida da URSS, Cuba e China, para começar a reconstruir uma esquerda revolucionária cada vez maior e mais forte em Portugal.

Se o tempo é de acalmia hoje no país, em breve será de novo de tormenta e as esperanças que hoje se depositam no governo e no presidente e no seu espetáculo demagógico, amanhã procurarão alternativas por fora do centro político. 2016, com Trump, Putin, Le Pen ou o Brexit, foi a direita quem lhes ofereceu essa alternativa radical. Quem 2017 seja o ano em que as alternativas fraturantes venham da esquerda, que em Portugal aproveitemos o actual interregno para tomarmos a iniciativa. Em 2017, a saída é pela esquerda!

Ilustração de Hélder Oliveira

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