A polémica tinha que estalar! Era demasiado escandaloso que não se falasse do assunto, quanto mais não fosse para satisfazer as exigências dos parceiros e salvar a coligação.
Será que todo este burburinho à volta dos subsídios para as escolas privadas, deixando as públicas a funcionar a meio gás, se destina apenas a mudar alguma coisa para que fique tudo na mesma?
Para compreendermos quando tudo isto começou, talvez valha a pena recuarmos até aos anos 70 do século XX, até porque o passado pode muitas vezes ser a chave para compreender o presente e enfrentar o futuro.
Já no exílio, no Brasil, e depois de ter sido deposto pela Revolução de 25 de Abril de 1974, escrevia o ex-ditador:
O problema do ensino particular preocupou-nos muito. À data em que se começou a pôr em prática a reforma do sistema educativo eram numerosas por todo o País as escolas particulares, em grande parte propriedade das dioceses ou de institutos religiosos. A maior frequência dessas escolas provinha dos alunos dos primeiros anos e as suas mensalidades constituíam a base do sustento do ensino dos anos mais adiantados. Ora, com a criação do ensino básico de seis anos, gratuito, e as perspectivas da sua extensão a oito, colégios particulares localizados na província perderam os alunos que acorreram às escolas preparatórias do Estado, e ficaram reduzidos à minoria dos últimos anos. Mesmo quanto a estes não se pode esquecer que a multiplicação dos liceus – só numa reunião do Conselho de Ministros (a 12 de novembro de 1971) foram criados 21 liceus nacionais mistos – também abria as portas do ensino oficial, muito mais barato que o dos colégios, aos jovens estudantes. Resultou daqui um clamor a que foi necessário atender, examinando os casos em que os colégios particulares, pelos serviços que prestavam, deviam ser apoiados mediante subsídios libertadores do “déficit” das suas contas.
Diziam os defensores deste tipo de ensino que o Estado teria podido diminuir francamente os seus encargos se, em toda a parte onde houvesse bons colégios particulares, firmasse acordo com eles para ministrarem gratuitamente o ensino básico obrigatório mediante subsídios suficientes. O problema era digno de ser estudado. Mas a mentalidade dominante no Ministério era no sentido de montar um ensino oficial completo e suficiente.[1]
Há coisas que nunca mudam!… E eis que, quase meio século depois, continuamos a discutir o mesmo assunto, mas perante uma nova realidade, de certa forma invertida: agora são as escolas privadas a querer “ganhar terreno” às públicas, mas com milhares de turmas a serem financiadas pelo Estado (em mais de 80 000 euros cada uma) e deixando quase vazios estabelecimentos do ensino público, alguns deles a escassos metros desses luxuosos colégios.
Ontem como hoje, ninguém iria aceitar que ao lado de escolas públicas, houvesse outras, privadas, completamente pagas pelo erário público, com transportes próprios, piscinas, recintos para equitação ou bailado, salas individuais de música magnificamente equipadas, e sabe-se lá que mais… Tudo isto em nome duma “liberdade de escolha” que jamais foi negada, pelo menos àqueles que a invocam, mas terá sido recusada aos alunos com necessidades educativas especiais e a outros de raças ou etnias minoritárias… Seria útil apurar, por exemplo, quantos alunos negros frequentam esse ensino principesco, em escolas com contrato de associação, ou quantos deficientes aí se terão acolhido… Não será por acaso que em recente reportagem televisiva se falava duma “escola dos pretos” (pública) bem perto de outra, privada, com 60 turmas financiadas pelos impostos de todos nós. Afinal de contas quem é que verdadeiramente não tem hipótese de escolha?
Enquanto isto acontece, as escolas degradam-se, cortam-se vencimentos aos professores, congela-se-lhes a carreira durante mais duma década, aumentam-se-lhes a carga horária e as tarefas burocráticas e inúteis que obrigam os docentes a permanecer mais tempo na escola, em vez de se ocuparem da componente individual de trabalho, preparando aulas e materiais pedagógicos que sirvam os seus alunos, e fomentem o sucesso escolar. Tudo isto perante a indiferença ou até a conivência de todas as organizações sindicais…
Tem sido uma estratégia que teria como objetivo a privatização de todo o Ensino, deixando apenas abertas algumas escolas públicas destinadas aos “indesejáveis”, condenados ao insucesso e à miséria. É o capitalismo e o neo-liberalismo a deitarem novamente as garras de fora e a revelarem a sua faceta mais selvagem! É o triunfo das máfias, também num domínio tão sensível como o da Educação Nacional.
Mal sabia Marcelo Caetano, o ditador, que no início dos anos 70 estava a cumprir alguns dos princípios básicos da democrática Constituição de 1976, cujo artigo 75º convém relembrar:
1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população.
2. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei.
Cabe-nos a nós, professores, e a todos quantos acreditam na Liberdade e na Democracia, lutar para que a Justiça e a Igualdade sejam, de facto, uma realidade no Ensino em Portugal.
A BEM DA REPÚBLICA
César Garcia
(professor do ensino público, básico e secundário)