“A libertação da cultura é inseparável da libertação das classes trabalhadoras e de toda a humanidade.”
O Governo PSD/CDS-PP apresentou no início do ano, através da Secretaria de Estado da Cultura, e aprovou recentemente o projecto de Lei da Cópia Privada. Este institui taxas de compensação, em prol de autores e produtores e num valor máximo de 20€, pelas cópias de uso privado que os utilizadores fazem em dispositivos electrónicos, aplicando-as sobre o preço de venda dos equipamentos ao público1. Os montantes cobrados são encaminhados para a AGECOP (Associação para a Gestão da Cópia Privada), que redistribui os valores por autores, intérpretes, produtores e distribuidores. Partindo da proposta apresentada em 2012 pelo PS e chumbada na especialidade pelo PSD, a nova iniciativa, em conformidade com as directivas da U.E., reduz as taxas mas estende as compensações a equipamentos que não eram taxados, isto é, a sua esmagadora maioria. Em contrapartida, o armazenamento de dados em cloud computing escapa para já às taxas.
Neste ataque à sociedade da informação manifesta-se mais uma vez, por um lado, o fetiche fiscalista do Governo em aumentar taxas e contribuições que em nada beneficiam os consumidores e, por outro, a cedência ao lóbi das associações de gestão colectiva de direitos de autor.
Antigo discurso, novo paradigma
A figura do autor, imensamente considerada nos séculos passados pelas elites, dessacralizou-se e banalizou-se primeiramente na sequência da invenção da imprensa e, nas últimas duas décadas e com maior intensidade, através das novas formas de reprodução técnica e transmissão das obras, nomeadamente as digitais, com o expoente máximo na Internet.
A sensação de liberdade na Internet ampliou a ideia de que os conteúdos inseridos no mundo virtual podem ser acedidos e utilizados independentemente de regras jurídicas coercivas. A autonomia e as facilidades de produção de cópias, considerando-se de que toda a informação é livre, instituiu-se a ideia de que os direitos de autor não podem ser concebidos como um elemento impeditivo da liberdade de expressão e acesso aos bens culturais.
Apesar desta transição, persiste o discurso, principalmente nos meios intelectuais mais elitistas, centrado na figura do autor e nos meios tradicionais de distribuição. Esquecem a crescente importância atribuída não só às obras, mas também ao seu consumo e transmissão, pois agora mais do que nunca as obras não são um fim em si mesmo, mas um meio. É por isso necessário reflectir sobre a importância e o trabalho dos autores, artistas e intelectuais na sociedade de comunicação e informação, mais aberta e com elos de ligação entre grupos e comunidades.
Uma proposta que generaliza e ofende
O projecto do Governo pretende “reforçar o legítimo interesse dos diversos titulares de direitos abrangidos pelo regime normalmente designado por ‘cópia privada’, mediante a criação de condições que garantam a percepção de uma compensação equitativa pela reprodução de obras intelectuais, prestações e produtos legalmente protegidos”2. Considerando-se que até o virtual tem implicações físicas, a proposta debruça-se não directamente sobre a pirataria das obras, mas sobre os suportes de armazenamento de dados.
A proposta, muito semelhante ao projecto apresentado pelo PS, comete o erro de confundir pirataria e cópia privada. Por um lado, a pirataria associa-se à cópia, comercialização e/ou exibição ilegal de obras a troco de dinheiro, sem respeitar os direitos de autor. Por outro lado, a cópia privada é permitida por Lei, servindo de garante para o detentor da obra.
No nº2 do Artº 75.º do Código do Direito de Autor está expresso que é lícita “a reprodução de obra, para fins exclusivamente privados, em papel ou suporte similar, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, com excepção das partituras, bem como a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos”3. Na distinção entre os conceitos está em causa a existência ou não de ganhos comerciais, o que à partida o Governo pensa que todos nós, ao determos uma cópia de qualquer obra, iremos procurar ter.
Nesta sociedade capitalista é cada vez mais comum um pequeno grupo impor taxas absurdas à sociedade como um todo. Com esta iniciativa o Governo trata-nos a todos como vigaristas e piratas, logo taxa tudo e todos sem qualquer contemplação. Taxa os dispositivos com capacidade de armazenamento e reprodução que podem ser usados para armazenar conteúdos legais e inclusivamente dos próprios utilizadores, como os para fins profissionais ou académicos. Em qualquer dos casos, todos os consumidores pagam a taxa ao comprar o equipamento, independentemente do destino que lhe derem.
Uma fonte de rendimento para criadores?
Outro aspecto grave do projecto de Lei do Governo é a influência exercida pelas sociedades de gestão colectiva de direitos de autor, nomeadamente a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), que se afirmou como um lóbi perante o Governo.
Sobre as taxas inicialmente propostas, a SPA criticou-as afirmando que tinha sugerido valores entre 40 a 60% mais altos!4 É certo que esta associação terá a ganhar com a taxação dos equipamentos, visto os montantes arrecadados serem-lhe entregues para que os distribua pelos seus associados. As associações de defesa dos direitos dos autores não funcionam da melhor forma, com uma distribuição de dividendos duvidosa, pelo que serão estas a lucrar com a aprovação da nova legislação.
Os dividendos são também destinados os autores e artistas já com obras produzidas e comercializadas. Já os jovens criadores com a falta de apoios e financiamento terão mais dificuldades em adquirir por cá equipamentos destinados, por exemplo, à produção cinematográfica. O projecto deixa ainda de fora a protecção dos autores não registados nas entidades que gerem a cobrança das taxas e os que querem promover as suas obras gratuitamente. Para além disso, as taxas poderão incidir sobre obras já compradas pelos consumidores, o que originará um enriquecimento ilegítimo das entidades de gestão colectiva de direitos e dos associados.
A forma de taxação utilizada será estabelecer um custo por cada gigabyte (GB) de capacidade de armazenamento. Por exemplo – de acordo com as taxas propostas, um disco rígido externo de 2TB (=2.000 GB) a 0,005€ por GB, seria taxado em 10€, o máximo permitido para este tipo de equipamento. Em 2000, a capacidade média de um disco rígido andava pelos 6GB e, em 2012, pelos 500GB/1TB. Actualmente já se fabricam com 4TB. Isto significa que quanto maior a capacidade, maior a taxa aplicada, logo maior os custos para os consumidores. Estes têm sempre como alternativa adquirir os equipamentos por preços inferiores em sites de venda online como o Ebay, aumentando as importações.
Novas formas
Apesar da ascensão da pirataria de obras audiovisuais com cada vez maior qualidade, as pessoas preferem ter o original se for acessível. Continua a aposta em suportes caducos como os CD’s e DVD’s, quando o consumo de filmes e música transitou para a Internet. Neste sentido, as indústrias culturais e de entretenimento têm vindo a aproveitar-se dos artistas ao praticar preços elevados, quando se devem defender preços mais baixos e uma maior comodidade na compra de conteúdos para contornar a pirataria. O modelo de combate à pirataria não deve passar pela taxação. Só há uma solução e nenhum dos partidos actualmente na Assembleia da República percebeu. É defender antes a liberdade e direito de escolha estendido a todos os cidadãos.
Organizar e defender criadores e artistas!
Na época actual, caracterizada pela crise do capitalismo, os artistas e intelectuais vêem-se privados do direito a viver condignamente e de continuar a sua obra pela limitação dos normais meios de difusão. Nos períodos de crise, a área da Cultura, enquanto meio de manifestação de liberdade e democracia, é das primeiras a ser afectada, o que desincentiva a experimentação artística e, sobretudo, o usufruto das obras. Dá-se assim lugar ao que é mais fácil e acessível, como as grandes produções para as massas, prejudicando a independência e a liberdade dos criadores.
O trabalho intelectual deve ser remunerado, mas a tentativa de o proteger através de organizações de gestão colectiva historicamente clientelares e da taxação da cópia privada é um erro. Apesar das especificidades, um autor não é diferente de qualquer outro trabalhador e deve ser remunerado pelo seu trabalho efectivo e não só com a miséria percentual do valor das vendas.
Os intelectuais, artistas e produtores devem unir-se por si próprios para defender a sua independência; bem como o direito a trabalhar em prol do seu sustento!
Exigimos a completa liberdade de criação artística, intelectual e científica, sem imposições de governos, partidos políticos e associações burocratas oportunistas!
Diogo Trindade
NOTAS
Para consultar as taxas inicialmente propostas, ver:
1. http://exameinformatica.sapo.pt/noticias/mercados/2014-07-30-Copia-Privada-veja-aqui-todas-as-taxas-propostas-pelo-governo?utm_source=newsletter&utm_medium=mail&utm_campaign=newsletter&utm_content=2014-07-30
2. http://www.jn.pt/PaginaInicial/Cultura/Interior.aspx?content_id=2275694
3. http://www.erc.pt/documentos/legislacaosite/Lein16_2008.pdf. Pág. 1910 do documento
4. http://www.tek.sapo.pt/noticias/computadores/spa_e_a_lei_da_copia_privada_e_uma_compensaca_1400438.html
Citação: – Declaração da Liga pela Liberdade Cultural e pelo Socialismo. In: FACIOLI, Valentim (Org.). Breton-Trotsky: Por uma arte revolucionária independente. São Paulo, Paz e Terra, CEMAP, 1985.