A 4 de Agosto de 2014, o Banco Espírito Santo (BES) deixou de o ser. O segundo semestre do ano termina com um prejuízo de 3,6 mil milhões €, valor nunca antes registado em Portugal.
Mas vamos por partes.
A crise internacional
Todos os acontecimentos que envolveram o GES, nos últimos meses, são enquadrados pela crise financeira e económica mundial, iniciada em finais de 2007. Como sabemos, esta crise mundial precipitou massivas falências de empresas por todo o globo. O investimento recuou. O desemprego cresceu exponencialmente e o consumo foi afectado.
Através da diminuição das receitas provenientes dos impostos (sobre o consumo e rendimentos em declínio) e do aumento das despesas (predominantemente, através da injecção de dinheiros públicos em buracos e fraudes financeiras), as finanças estatais são abaladas. Os défices dos Estados aumentam, alimentados por um galopante endividamento interno e externo (dívida pública). Os Estados necessitam de um crescente volume de financiamento.
A pressão dos mercados financeiros sobre as finanças públicas vai crescendo e os governos dos vários países fazem recair a factura da bebedeira financeira sobre as costas das suas populações. Este é o retrato desde finais de 2007.
Em Portugal, o Governo Sócrates aplica 3 Planos de Estabilidade e Crescimento (PEC). A razia sobre o nível de vida da população é de tal ordem que o PEC 4 é chumbado nas ruas com as gigantescas mobilizações de 12 de Março de 2011. A 23 de Março de 2011, apenas 11 dias após aquela mobilização, o Governo Sócrates cai. Por esta altura, estava também perturbada a banca nacional, com um endividamento externo no limite e os seus balanços repletos de títulos de dívida pública portuguesa (e não só), fruto da especulação nestes mercados. A 8 de Abril de 2011, o demissionário Governo Sócrates formaliza o pedido de financiamento à Troika. Este acontecimento é o inaugurar de uma nova era no país.
Os banqueiros nacionais tentaram impossibilitar a incursão da Troika até que, para os salvar (aos bancos), a mesma se tornou “inevitável”. A Troika estabeleceu o seu conjunto de exigências: (i) impôs reforços de capital ao sector financeiro português, muitos deles feitos através de dinheiros públicos; (ii) obrigou os bancos a baixarem os seus rácios entre crédito e depósitos de um valor que rondava os 160% para um máximo de 120%; e (iii) sujeitou os 8 maiores grupos financeiros nacionais a auditorias, sob a sua orientação.
Este conjunto de exigências veio desafiar e enfraquecer a margem de manobra do poder financeiro na periferia da Europa, nomeadamente, em Portugal. Este é o plano de fundo das intervenções externas: para salvar os grandes grupos financeiros mundiais, há que alargar as suas fontes de riqueza através do aprofundamento do domínio dos países periféricos face aos países mais centrais. Os banqueiros periféricos, habituados a determinar o rumo nacional dos acontecimentos, viram-se sob as ordens e o escrutínio de terceiros.
A 21 de Junho de 2011, toma posse o Governo de Passos Coelho. Um governo altamente alinhado com o plano da Troika. Enquanto um gritava “mata”, o outro clamava “esfola”.
O Grupo Espírito Santo (GES) – Não é má gestão, é crime!
No contexto geral da crise internacional, os negócios do GES, um emaranhado composto por cerca de 400 empresas, que actua nos sectores financeiro, imobiliário, construção, saúde, turismo, agricultura, energia, em 4 continentes diferentes, deixa de gerar a rentabilidade suficiente para financiar os investimentos anteriormente desenvolvidos. Os negócios passam então a funcionar constantemente, desde 2008, através do recurso ao endividamento. Ou seja, para pagar as dívidas de hoje, é pedido sucessivamente mais crédito que, por sua vez, será “pago” amanhã.
A dívida cresceu e adensou-se, até porque os lucros e, consequentemente, os dividendos do BES (que eram a principal receita do GES) caíram até deixarem de existir.
O próprio Ricardo Salgado admite, em Maio de 2014, em entrevista ao Jornal de Negócios, que “a crise bateu forte e bateu no Grupo [Espírito Santo]”.
O endividamento é de tal ordem que em Maio de 2014, a holding mãe do GES, a Espírito Santo International (ESI), para além de se encontrar em falência técnica, tem ainda uma dívida de 1,2 mil milhões € ocultada da sua contabilidade. Segundo o contabilista da holding, desde 2008 e sob a orientação de Ricardo Salgado, as contas tinham vindo a ser falsificadas como forma de encobrir a situação calamitosa do grupo.
De acordo com a informação tornada pública, a situação real da ESI cifrará uma dívida total que ronda os 7,3 mil milhões €, superior ao activo em 2,5 mil milhões €. Por outras palavras, se, no presente momento, o GES quisesse pagar toda a sua dívida, os seus activos não eram suficientes, faltando ainda 2,5 mil milhões €. Abriu-se a caixa de Pandora.
Precisamente em Maio de 2014, disparando os seus últimos cartuxos, Ricardo Salgado terá tentado financiar o GES em 2,5 mil milhões €, primeiro, através do Governo de Passos Coelho e depois através de altas figuras do regime angolano.
A primeira alternativa envolvia o financiamento daquela verba, através da intermediação do Estado português, por meio da CGD e também do BCP (ambos sob intervenção estatal). Após um penoso resultado eleitoral europeu para os partidos do Governo e a quase um ano das próximas eleições legislativas, Passos Coelho, na esperança de capitalizar ao máximo a crise do PS, não quis, no momento, agarrar a batata quente enquanto existissem mãos frias que pudessem adiar o problema. A segunda alternativa foi igualmente abortada. O Estado angolano, a braços com uma garantia bancária prestada ao BES Angola, no valor de 4,3 mil milhões € (lá iremos mais à frente), deu igualmente uma resposta negativa.
Hoje pode dizer-se que Ricardo Salgado e o GES estavam já completamente submersos e lançavam braços às últimas botijas de oxigénio.
Perante as irregularidades contabilísticas detectadas no GES, a Procuradoria do Luxemburgo abriu inquéritos a três empresas do grupo, sediadas naquele país, nomeadamente, à Espírito Santo Control (ES Control), à ESI e à Espírito Santo Financial Group. O GES acaba mesmo por pedir, aos tribunais luxemburgueses, a gestão controlada destas empresas como forma de estabelecer negociações com os seus credores.
O endividamento do GES foi de tal magnitude que atingiu um ponto sem retorno. Para pagar a dívida existente, não existindo crescimento da actividade do grupo, este recorreu ao crédito sucessivamente. Para além da falsificação de contas e sem mais por onde se financiar, foi criado, no GES, um “sistema de financiamento fraudulento”. Foram estas as palavras do Governador do Bando de Portugal (BdP). Depois de esgotados todos os parceiros que estariam em condições de financiar o grupo, este começou a fazê-lo através dos clientes do BES, primeiro através de fundos de investimento por si geridos e depois através de papel comercial. O BES chegou a emprestar, directamente, 1,5 mil milhões € ao GES.
Para além do BES, 2 mil milhões terão sido emprestados por institucionais, entre os quais estão a PT com 900 milhões € e a petrolífera do Estado venezuelano com 800 milhões €. Várias seguradoras do GES terão emprestado cerca de 230 milhões €, e 900 milhões € terão sido emprestados por pequenos investidores, tais como clientes do BES e clientes da gestora de fortunas suíça, a Banque Privée Espírito Santo. Estes valores deixam antever os milhares de particulares, pequenas e médias empresas que terão emprestado as suas poupanças ao GES, através da compra de papel comercial. É caso para dizer que o cancro foi alastrando e contaminando tudo por onde passou.
Em inícios de Julho de 2014, os receios em torno da solidez financeira do GES ganham corpo ao ter-se conhecimento público de que a suíça Banque Privée Espírito Santo está em incumprimento quanto ao reembolso de alguns clientes que tinham aplicações em dívida da ESI. Esta gestora de fortunas suíça acaba mesmo por vender, de seguida, parte do seu negócio ao banco suíço CBH como forma de pagar as aplicações dos seus clientes.
Como se não bastasse, o mês de Julho termina com a ESI a falhar o pagamento dos 900 milhões € emprestados pela PT. Este acontecimento teve e terá consequências catastróficas para a fusão que a PT estava a preparar com a brasileira Oi.
O mês de Julho termina com os bancos Espírito Santo nos EUA, Líbia, Panamá e Venezuela a serem alvo de investigações. É mais que certo que também estes bancos serviram para financiar a dívida do GES.
O que aconteceu no GES? Um brutal endividamento do grupo, que tinha vindo a ser escondido das suas contas e que desembocou na sua falência. A falência do grupo arrastou-se no tempo, agravando a sua situação, através de um financiamento fraudulento proveniente dos bancos e seus clientes pertencentes ao GES.
É urgente uma auditoria independente ao Grupo Espírito Santo!
José Aleixo
Parte 2: BES, o Buraco dos Espírito Santo – Prisão e confisco para quem roubou o BES!
Parte 3: BES, o Buraco dos Espírito Santo – Impunidade para os banqueiros, custo para a população!
Parte 4: BES, o Buraco dos Espírito Santo – A face política
Parte 5: BES, o Buraco dos Espírito Santo – A face política do buraco BES/GES
Este é um texto composto por 5 partes e esta é a primeira, as próximas serão publicadas nos próximos dias. É um texto que pretende ajudar à compreensão geral da crise em que se encontra o Grupo Espírito Santo, o mais poderoso grupo privado financeiro português. Desde o seu enquadramento na crise internacional, passando pelo papel da Troika,pela função do Governo de Passos Coelho, pela influência das relações pessoais e terminando com as possíveis consequências para a economia, política e e quotidiano da sociedade portuguesa.