Destruição da Colina de Santana é mais um vergonhoso caso de especulação imobiliária

Há quase dois séculos e meio que se pratica medicina na Colina de Santana. Nesta colina, dez gerações procuraram saúde, conforto, esperança. Esta colina viu a ciência médica dar saltos de gigante, viu os horizontes da vida humana progressivamente alargados e acumula, em suas várias unidades hospitalares, um rico património científico, arquitetónico e artístico.

Mas todo este tesouro humano está agora seriamente ameaçado por uma gigantesca operação imobiliária promovida pela Estamo, empresa de capitais públicos que adquiriu cinco hospitais – Miguel Bombarda, Santa Marta, Capuchos, São José e Desterro – para construir hotéis, condomínios e áreas comerciais.

Esta operação imobiliária arrancou em 2009, com a venda desses veneráveis edifícios pelo Ministério da Saúde à dita Estamo. O mote é que com a futura construção do Hospital de Todos os Santos, no Vale de Chelas, os hospitais centrais de Lisboa seriam redundantes.

Antes de qualquer consideração sobre o devir do património material aqui presente, devemos questionar a sensatez de deslocalizar unidades hospitalares para uma zona periférica duma cidade demograficamente envelhecida. Questionamos também se o futuro Hospital de Todos os Santos, que tudo aponta será um hospital de médias dimensões, terá valências suficientes para substituir as unidades hospitalares que agora desaparecem.

A julgar pelo fecho anunciado da Maternidade Alfredo da Costa, uma das melhores instituições do género em todo o mundo, estas preocupações são secundárias quando se está a preparar um chorudo negócio imobiliário em Santana e mais uma questionável parceria público-privada em Chelas.

Aliás, no âmbito do desmantelamento da oferta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e como ponte para a transferência de serviços para o Hospital de Todos os Santos, tem sido sistematicamente reduzido o número de camas nos atuais hospitais da Colina de Santana, resultando daí os doentes muitas vezes ficarem “pendurados” na urgência à espera de vaga.

Esta negociata, partindo do governo central, teve a colaboração da Câmara Municipal de Lisboa, que trocará as taxas municipais sobre infraestruturas que a Estamo é obrigada a pagar pela cedência de quatro edifícios onde a CML supostamente instalará alguns equipamentos públicos, num protocolo assinado em segredo e revelado no verão passado.

A CML tentou evitar a discussão publica e democrática de um projeto tão importante para a cidade estipulando um prazo de participação extremamente curto – de 1 a 12 de Julho – para o debate dos pedidos prévios de informação à Estamo. A ideia parecia ser dar como assunto encerrado a mais profunda alteração urbanística da cidade desde o tempo da Expo.

Mas, felizmente, a sociedade civil mexeu-se e, através de cartas, petições e textos na imprensa, conseguiu que o edil agendasse uma série de cinco debates públicos moderados por deputados municipais e com a intervenção de cidadãos. O primeiro debate realizou-se a 10 de Dezembro e o segundo está marcada para hoje, dia 28 de Janeiro. Contudo esta assembleia municipal não tem efeitos vinculativos e nada garante que as recomendações e opiniões sejam tidas em conta na decisão final da Câmara de aprovar os loteamentos.

As interrogações sobre o destino que irá ser dado ao património classificado e àquele que nunca chegou a sê-lo apesar do seu valor arquitetónico, histórico e científico são numerosas. A construção numa área que totaliza 30 hectares, dez loteamentos e 85% de demolição das atuais construções fazem temer o pior. Interrogamo-nos sobre o destino que será dado ao vastíssimo património móvel artístico e científico e se alguma vez veremos nascer um museu hospitalar de Lisboa, uma lacuna imperdoável para uma capital europeia.

Interrogamo-nos sobre o futuro de tanta edificação ímpar na história da arquitetura hospitalar: no atual projeto para o lote do Hospital Miguel Bombarda, todo o edificado, à exceção do edifício principal (que terá o seu interior em grande parte demolido), do balneário Dona Maria II e do Pavilhão de Segurança, parece estar condenado ao camartelo.

Desaparecerão os singulares edifícios de enfermarias em poste telefónico e em U, o laboratório construído em 1898 onde outrora Marck Athias fez progredir o ensino da investigação médica em Portugal, o telheiro do passeio dos doentes, as cozinhas, a oficina para doentes, os painéis de azulejos junto ao Hospital de Dia, todos eles testemunhos inovadores de uma nova abordagem da ciência psiquiátrica por parte de Miguel Bombarda.

Qual o sentido de destruir quase toda a obra do pioneiro arquiteto José Maria Nepomuceno, deixando apenas de pé e isolado o magnífico Pavilhão de Segurança e relegando para o esquecimento os outros edifícios que neste contexto se revelaram tão importantes como o dito pavilhão?

E que acontecerá à fabulosa coleção de Arte Outsider criada por doentes do hospital desde o início do século XX e já reconhecida por vários peritos como uma das mais antigas e valiosas no género? Porque é que os edifícios que poderiam abrigar estes milhares de peças serão transformados em hotel ou demolidos em vez de serem o museu que as revelariam ao mundo?

Também está prevista a demolição do belo edifício do Instituto de Medicina Legal edificado nos anos 1920. O Torreão de Santana, a maior da muralha Fernandina, será tapado por novas construções. Um silo de estacionamento será levantado junto à Igreja dos Capuchos. O desprezo pelos valores da preservação do património histórico é tão absoluto que os projetos de loteamento violam de forma descarada as zonas especiais de proteção do património já classificado.

Numa cidade marcada pela degradação do tecido urbano; pela destruição implacável de incontáveis edifícios de grande riqueza estética e memória histórica; e pela especulação imobiliária que dificulta o acesso à habitação, as demolições e os loteamentos da Colina de Santana prefiguram não só mais um ataque ao SNS como um crime de lesa-património de proporções monstruosas. Será uma parte da história do país, da ciência e da arquitetura que desaparecerá com a morte anunciada da colina da Saúde.

Apelamos assim à presença dos cidadãos nas próximas reuniões de discussão do projeto da Colina Santana, a começar pela de dia 28 na Assembleia Municipal de Lisboa. Mais do que nunca, a sociedade civil deve unir-se e fazer frente à ganância dos promotores imobiliários.

David Santos

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