Sérgio Denicoli, professor da Universidade do Minho, investigou a implantação da Televisão Digital Terrestre (TDT) em Portugal e chegou à conclusão de que as lógicas das grandes empresas prejudicaram a oferta de mais canais e de serviços televisivos interativos, as principais promessas da TDT. Dois dias após à defesa da sua tese de doutoramento sobre este tema, em finais de outubro do ano passado, a Portugal Telecom (PT) e a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) ameaçaram processá-lo. Estudo da DECO feito durante o mês de novembro de 2012 revelou um outro efeito perverso da implantação da TDT em nosso país: 62% dos inquiridos que optaram pelo acesso terrestre gratuito disseram que o sinal de televisão que recebem não tem qualidade, isto é, foram prejudicados pela TDT.
Entrevistamos Sérgio Denicoli, para conhecer o que diz a sua tese:
O que te levou a abordar a TDT na tua tese de doutoramento?
A televisão sempre foi um meio que me fascinou. Desde criança eu planeava descobrir o que estava por trás daquela caixa mágica que exibia imagens capazes de entreter, informar e até mesmo emocionar os telespectadores. Logo que me formei em jornalismo, tive a oportunidade de trabalhar em televisão. Comecei como produtor local numa das filiais do Globo no Brasil, depois passei a repórter, editor e produtor nacional. Adorava a prática jornalística televisiva, mas achava que faltava mais embasamento teórico que me permitisse perceber ao certo a amplitude da influência da TV na vida das pessoas.
Decidi então voltar à universidade e fazer um mestrado para conhecer mais profundamente os conceitos da área em que eu trabalhava. Optei por uma universidade europeia, de forma a conseguir referências mais abrangentes e não apenas modelos adotados na TV brasileira. Foi assim que, em 2004, ingressei na Universidade do Minho (Uminho), onde desenvolvi uma dissertação sobre o jornalismo televisivo internacional, mas com uma forte vertente que abordava a influência da tecnologia na programação.
Antes mesmo de finalizar o mestrado foi convidado a dar aulas na Uminho, sobre rádio e TV. Posteriormente deram-me a cadeira de ciberjornalismo, uma vez que a comunicação digital naturalmente se impôs perante meus estudos. Ainda hoje ministro esta cadeira, que, coincidentemente, está agora muito focada na imagem, que é o elemento mediático mais forte na Internet.
Quando decidi fazer o doutoramento eu já estava plenamente envolvido com a academia. Eu pretendia continuar a estudar a televisão, mas queria também algo que envolvesse a tecnologia. Optei então por estudar a TV digital terrestre, cuja implementação ainda era algo nebuloso. O que eu não esperava é que uma tese, que inicialmente focava-se na análise da programação televisiva, fosse caminhar para a economia política dos média. Mas foi algo inevitável, uma vez que, no estágio em que a TDT encontrava-se, eram as relações políticas e económicas que iriam ditar as regras da televisão do futuro.
Quais as principais conclusões a que chegaste?
Cheguei à conclusão que em Portugal as lógicas das grandes empresas prejudicaram a oferta de mais canais e de serviços televisivos interativos, que eram as principais promessas da TDT. Tudo isso foi feito com a anuência do regulador das telecomunicações, que parece ter sido capturado pela Portugal Telecom, que foi a empresa responsável pela implementação da rede de TDT. Os estudos pioneiros sobre a captura do regulador partiram de um grande economista, ganhador do Prémio Nobel, chamado George Stigler. A teoria que ele desenvolve foi ampliada por outros grandes investigadores, cujos estudos serviram como base para a elaboração da minha tese.
A captura do regulador é considerada um ato de corrupção, pois beneficia o poder privado a partir de algo que é público. Encontrei indícios de captura no processo da TDT portuguesa e fiz esta denúncia no meu estudo, de forma a estimular os órgãos competentes a investigarem o processo para que, em caso de comprovação desses indícios, os envolvidos fossem punidos e a população não fosse prejudicada.
Houve uma reação agressiva por parte da Portugal Telecom que não se justifica, e que classifico como uma tentativa de intimidação e de censura da liberdade de expressão e de investigação. Os meios de comunicação focaram-se na polémica, mas poucos tiveram o cuidado de ler a tese e questionar as autoridades a respeito dos pontos obscuros sobre a implementação da TDT que apresento no estudo. Até hoje não sabemos, por exemplo, o motivo da Anacom ter alterado o contrato que desobrigava a PT a arcar com os custos de receção do sinal nas zonas de sombra, o que onerou a população e criou uma situação de desigualdade em relação aos cidadãos que estavam em zonas cobertas pelos sinais da TDT.
Não sabemos nem mesmo quantas pessoas foram beneficiadas com os subsídios destinados à compra dos descodificadores. Os sinais apresentam muitas falhas e a oferta de canais é a mais pobre entre os países da União Europeia. O resultado foi o crescimento gigantesco do mercado de TV paga, sobretudo o MEO, da PT, que teve o número de clientes aumentado em 185% durante o período de implementação da TDT.
Depois de todo o processo à volta da tese, desde a sua elaboração até à polémica posterior, achas que a promiscuidade entre os reguladores, os grupos económicos e o governo foi um caso isolado ou é algo que acontece frequentemente?
A promiscuidade entre reguladores, empresas reguladas e partidos políticos pode ocorrer em qualquer país. Na democracia o poder principal, teoricamente, está nas mãos dos cidadãos. No entanto, em casos como o da TDT, as empresas envolvidas podem criar um cenário que impede que a informação correta chegue às pessoas e, assim, evitam um debate claro e amplo sobre a tecnologia a ser implementada, fazendo com que seus interesses, voltados exclusivamente para o lucro, se sobressaiam aos interesses da população.
O poder excessivo das grandes empresas tem suscitado protestos em todo mundo. As pessoas estão cansadas de serem exploradas. O poder económico não enxerga o ser humano e transforma a todos em meros números, pois está focado apenas em seus ganhos desmedidos, seus lucros exacerbados. O capitalismo selvagem é uma doença que precisa ser erradicada, pois ela contamina agentes políticos, agentes de regulação que deveriam primar pelos interesses da população, minam poderes que deveriam garantir um equilíbrio social. Estamos todos fartos disto.
Qual a posição dos restantes partidos de esquerda, em particular o BE e o PCP, em todo o processo? Sentiste o seu apoio?
Houve algumas iniciativas louváveis por parte dos partidos de esquerda, nomeadamente o BE e o PCP. No entanto, foram pouco contundentes. Esses partidos têm um espaço de atuação limitado porque são engolidos pelo sistema que privilegia os partidos do bloco central. Alguns deputados chegaram a solicitar informações sobre a TDT, e atendi-os prontamente, mas a própria agenda política impediu-os de formar frentes mais aprofundadas para analisar o caso. Além disso, sinto que há um certo constrangimento, mesmo dos partidos de esquerda, em enfrentar o poder económico. Não conseguem vislumbrar armas para combater o poder económico nocivo, pois estão inseridos e devidamente enquadrados num sistema político falido, que não representa mais os cidadãos.
Qual será a solução para casos como este?
A solução é passar o país a limpo, acionar a justiça, denunciar, combater, lutar por um Portugal mais justo. Pode até parecer piegas o que vou dizer, mas acho que falta mais amor para defender a pátria de quem tenta roubá-la, de quem tenta deturpar a sua ainda frágil democracia estabelecida a duras penas. Sou um eterno otimista. Acredito que temos que fazer a nossa parte, vencer o medo, lutar pelo que acreditamos. A indignação das pessoas, que vejo manifesta em todo lado, não pode estar restrita às paredes de casa. É preciso ir às ruas lutar. E, ainda mais importante, é preciso votar.
O voto pode mudar um cenário político. É difícil apresentar soluções alternativas, mesmo porque os meios de comunicação de massa estão muito aptos a manter o status quo e nem mesmo dão espaço a ideias diferenciadas, a grupos políticos de cores diferentes das usuais. Mas hoje temos as redes sociais online e através delas é possível difundir ideias e mostrar às pessoas que há sim alternativas. O povo está carente, necessita de um líder digno, correto, que realmente se importe com ele e que não seja hipócrita, cheio de sorrisos e promessas até chegar ao poder e trair quem o elegeu. Penso que chegamos à era da verdade e a mudança será inevitável.
Entrevista de Eduardo Velosa