O governo recuou do seu modelo original de privatização da RTP, mas tem um plano de reestruturação da empresa que prevê, conforme admitiu o seu presidente, Alberto da Ponte, despedimento coletivo. A Comissão de Trabalhadores (CT) protesta, alegando que a reestruturação foi preparada de forma ilegal e clandestina, e ameaça com a sua impugnação judicial. O comunicado da CT acusa ainda o ministro-adjunto Miguel Relvas de querer “destruir e despedir” porque “não conseguiu privatizar a seu gosto”.
O plano agora, segundo a CT, seria fazer da RTP uma espécie de PPP (Parceria Público-Privada), financiada pelo Estado com 42 milhões de euros. Esta nova dívida serviria também para pagar a “guerra contra os postos de trabalho”. “Esta reestruturação, pelo que se vai sabendo, aponta ao coração de um projecto de serviço público e aponta a centenas de postos de trabalho na RTP. É esse o seu conteúdo e por esse conteúdo tem de ser travada”, diz o comunicado dos trabalhadores.
Transcrevemos, a seguir, a entrevista feita no início de janeiro com o porta-voz da CT da RTP, Camilo Azevedo:
Os capitalistas querem voltar ao século XIX
A RTP presta um bom serviço público?
A RTP nunca foi pensada como devia, ao longo de décadas nunca pensaram numa forma séria de servir à população. A RTP é uma criança abusada. Os partidos do poder usam-na, põem lá pessoas. Porque para os políticos o serviço público começa e acaba no telejornal, o resto é paisagem. Bastava ir pela Europa e ver como é que se faz serviço público a sério. Fizeram sempre simulações de que isto tem concorrência. Mas os outros são canais comerciais, por isso não temos concorrência. A própria organização funcional da empresa é decalcada das comerciais. E a forma como a organização é, também tem a ver com os conteúdos. Nós não gostamos dos conteúdos da RTP.
A responsabilidade é de quem?
O problema não é da RTP, mas da governança do país em geral. É preciso outro governo na RTP, é preciso ter outro respeito pelos trabalhadores, porque são parte atuante, e não alguém que anda ali a levar as grades de cerveja de um lado para o outro [o atual presidente da RTP foi presidente da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas]. Essa administração e a anterior não percebem onde estão. Nós precisamos de pessoas excecionais à frente da RTP.
Qual a opinião dos trabalhadores sobre a privatização da RTP?
É evidente que somos contra a privatização. Até a Constituição diz que aquilo tem de ser público. O nome mais correto neste momento é piratização. A RTP tem 75 anos de rádio e televisão, tem um grande património. As peças do Museu da Rádio são únicas, vão privatizar aquilo porquê? Outra coisa: temos um acervo de partituras, das antigas orquestras, e isso vai ser privatizado? Parece tudo, seja na televisão seja na rádio, um disparate. É uma combinação de almoço. Os outros operadores comerciais de televisão disseram que não era oportuno o negócio, e eles querem ir para a frente com o negócio. E já apresentaram os cenários mais mirabolantes.
Como o último, que prevê a privatização de 49% da empresa…
A Constituição diz que aquilo tem de ser gerido publicamente. Então vão privatizar, mas tem de ser gerido publicamente… E os 49% recebem uma taxa, que é quase um imposto, porque toda gente tem eletricidade, e paga! Porque o CAV [Contribuição Audiovisual] é quase um imposto. E esse imposto vai para um privado? Há aqui muitos problemas de direito, de Constituição, de cidadania… Isso é um disparate e os portugueses sabem que é um disparate. Como foi a TAP. Agora a televisão pública ir parar num off shore do Panamá? [A principal proprietária da empresa angolana Newshold, interessada em comprar a RTP, está registada na cidade do Panamá] E mesmo essa questão da nomenclatura angolana, não é dos angolanos, do povo; toda gente sabe de onde vem esse dinheiro. Tem alguma lisura aquele dinheiro? Há aqui um problema ético gigante.
Por falar em problemas éticos, há um outro…
O caso das imagens, que é um caso gritante. Como é que é possível diretores acharem normal ter a polícia a visionar imagens de uma manifestação numa redação? [agentes da PSP visionaram imagens da manifestação da greve geral de 14 de novembro] É um problema de ética! A partir daí está tudo dito! Quem foi, quem não disse… Mas algum [diretor] pôs o seu lugar à disposição quando outros quiseram ou consentiram? A polícia entrou porque alguém os deixou entrar, os convidou. Que eu saiba a polícia não arrombou a porta da RTP e de um diretor para ir lá visionar as imagens! Isso é muito grave! Para nós, trabalhadores, isso é a metáfora da falta de qualidade dos diretores que nós temos e da administração que temos. Agora há outra coisa que para nós, trabalhadores, é muito complicada. Para que serviriam essas imagens? Era para o Ministério Público apresentar para as pessoas que foram apanhadas naquela também encenação? Porque houve aqui várias encenações. Nós estamos num país a encenar. Gerido por encenadores primários. E as imagens fizeram parte. Por isso nós não ficámos nada contentes com o papel ético que os diretores tomaram.
Por que a CT da RTP passou a marcar a agenda?
Nós marcamos a agenda porque a RTP marca a agenda. Porque o disparate do governo sobre a RTP também marca a agenda, o mediatismo que o disparate traz. Agora, também nós sabemos, na história da luta dos trabalhadores, que as comissões de trabalhadores têm sido muito usadas como uns transfers das administrações em relação aos trabalhadores; muitas comissões estão divididas ou por sindicatos ou por partidos, e tornam-se inoperacionais. Devido a termos uma nova linguagem, nós temos o respaldo dos trabalhadores e do povo português. As associações de estudantes convidam-nos para ir lá falar sobre a nossa luta e o que se passa em Portugal, porque fazemos parte da nova gramática da luta em Portugal.
E o que se passa em Portugal?
O país está a definhar, a RTP está a definhar, está tudo a definhar… Quem lê os romances de Dickens e vê o que era o trabalho e aqueles ambientes percebe que é o objetivo dos nossos merceeiros [governantes] e dos nossos capitalistas para o povo. Um retorno ao século XIX. É o sonho deles. Mais que ler o Orçamento, devemos ler o Dickens, para perceber o que eles querem. E quem pode fazer a saída do definhamento são os cidadãos. É uma nova forma de fazer política. Uma nova forma de trabalhar na sua empresa, no seu bairro, para depois influir na vida do país.