Em plena ditadura militar no Brasil, Chico Buarque de Holanda compôs uma música que tinha como estribilho “Chame o ladrão”. Isso porque, na música e na realidade, os papéis estavam invertidos. Em vez de ser o ladrão a assaltar as nossas casas e termos de chamar a polícia para nos salvar, era a polícia que nos atacava e, na ironia de Chico, não tínhamos outra saída que não “chamar o ladrão”. Coisa parecida está a acontecer nos últimos tempos aqui em Portugal.
Em vez de prender os responsáveis pela fome de 10.385 alunos das escolas públicas ou pelo desemprego de 1,3 milhões de portugueses, a PSP e o Ministério Público estão entretidos em criminalizar os que exercem o seu legítimo direito de protestar contra este estado de coisas. Sem, inclusive, medir meios para isso, cometendo todo tipo de ilegalidade.
Depois de, na noite da greve geral de 14 de novembro, ter agredido com extrema violência milhares de pessoas que protestavam pacificamente em frente à Assembleia da República, com a justificativa de punir uma minoria que atirara pedras contra polícias, a PSP deteve dezenas de manifestantes nas esquadras de Monsanto e do Calvário, impedindo-os de terem contacto com advogados e familiares e pressionando-os a assinar folhas em branco. Nessa mesma noite, contactou a RTP para ter acesso a imagens não editadas da manifestação, uma iniciativa já classificada de ilegal no passado recente pelo Tribunal Constitucional.
Como se não bastasse tudo isso, o Ministério Público ainda abriu mais sete inquéritos contra manifestantes, a pedido da PSP, acusados de resistência e coação contra a autoridade e motim. Paula Montez, ativista dos Indignados, é uma das constituídas arguidas com a acusação de ter atirado pedras contra a polícia. Ela conta em sua página no Facebook que foi convocada por telefone, carta e correio eletrónico para se apresentar nas instalações do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, onde foi constituída arguida e ficou com Termo de Identidade e Residência.
“Todos os que me conhecem” – escreveu Paula – “sabem que não sou pessoa para andar a atirar pedras à polícia, que sempre defendi a estratégia da não violência, da desobediência civil e da resistência pacífica. Que em todas as manifestações me movimento de um lado para o outro a captar imagens e que muitas vezes me vejo obrigada a erguer o braço para fotografar acima da minha estatura. Não há ninguém que me reconheça ou possa apontar como sendo violenta ou capaz de andar a arremessar objetos em manifestações, por muito que considere que a violência com que o sistema nos ataca nos nossos direitos e nas nossas liberdades – e agora também acometendo contra a integridade física de todos quantos estávamos naquela praça – possa gerar a revolta e a reação das pessoas.”
Paula conclui que se trata de uma “perseguição por parte da PSP a pessoas que estiveram naquela manifestação”. “Enfim, tal como antes já tinha previsto, no dia 14 de novembro começou uma intencional e persecutória caça às bruxas e desde então não param de acontecer fenómenos sobrenaturais em democracia: identificam-se pessoas em imagens duvidosas, denunciam-se situações que não aconteceram, subvertem-se imagens dúbias e de qualidade duvidosa para servirem de prova a acusações infundadas, usam-se telemóveis pessoais para enviar convocatórias do DIAP (…)”
Myriam Zaluar é outra ativista que está a denunciar a perseguição de que é vítima. Ela é acusada pelo “crime” de manifestação ilegal, por ter participado numa ação de protesto (inscrição coletiva de desempregados) no Centro de Emprego do Conde Redondo, em março deste ano, organizada pelo Movimento Sem Emprego (MSE). O processo será julgado em 10 de janeiro próximo, às 11 horas, no Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa.
Assim como aconteceu na greve geral de 22 de março, em que a agressão a manifestantes, jornalistas e transeuntes por parte da PSP foi considerada “adequada e proporcionada” pelo ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, a carga policial de 14 de novembro foi elogiada. Nada a estranhar, pois a ordem de reprimir e criminalizar os protestos tem origem no governo, o mesmo governo que condena crianças à fome, idosos à morte e trabalhadores ao desemprego.
Mas não estão – e não vão – conseguir o que querem, isto é, nos atemorizar e calar. Estamos ao lado de Paula Montez, Myriam Zaluar e todos os arguidos nos processos montados pela justiça dos verdadeiros criminosos. Todos juntos nas ruas, na luta, nas greves e nas manifestações, faremos desse governo um episódio do passado, um episódio que, também a citar Chico, “vai passar”.
Cristina Portella