Foi com indignação que soubemos hoje que o agente da PSP acusado pela morte de Kuku, o jovem negro de 14 anos morto em 2009 na Amadora, foi absolvido nos Juízos Criminais de Lisboa. O agente era acusado de homicídio negligente grosseiro, e o Tribunal deu como provado que o seu disparo provocara a morte do jovem. Mesmo assim ele foi absolvido, demonstrando o racismo e o preconceito de classe que dominam a justiça burguesa.
Transcrevemos, a seguir, o artigo que publicaríamos nos próximos dias sobre a luta da família e dos amigos de Kuku por justiça, escrito por Ysmail X, um dos ativistas que participam dessa campanha.
Kuku e a luta pela justiça
No dia 4 de Janeiro de 2009, na Amadora, após uma curta perseguição, Elson Sanches, mais conhecido por Kuku, era assassinado por um agente da Polícia de Segurança Pública. Tinha 14 anos, pouco mais era do que uma criança, e estava desarmado. Contudo, isto não impediu o assassino de balear Kuku na cabeça, com a sua arma de serviço a pouco mais de 15 centímetros do assustado rosto. Após o estrondo do disparo, o infantil corpo precipitou-se, inanimado, ensanguentando o solo junto às botas pretas do polícia.
Tratamos aqui, portanto, da execução sumária – sem julgamento – de uma criança, efetuada por um agente das forças de segurança do Estado Português, num país onde a pena de morte foi oficialmente abolida em 1867.
A comunicação-social, sempre pronta a capitalizar com o sangue e o sofrimento, deu, apesar disso, pouca atenção a este ato assassino. Alguns jornais mencionaram brevemente o caso, lançando o estigma de criminoso sobre Kuku, enquanto omitiam a sua idade. Já a televisão e a rádio censuraram por completo o ocorrido durante o máximo de tempo possível. Somente duas semanas após o homicídio, no dia 17 de Janeiro, é que a notícia constou nos telejornais e na imprensa com algum destaque – ainda que não com o devido. E isto unicamente porque um protesto com centenas de manifestantes se realizou diante da esquadra do Casal de São Brás, na Amadora. A situação era intolerável, a população exigia justiça, o julgamento do assassino!
No jornal diário Público, qualquer leitor seria, no entanto, apresentado a uma história muito diferente. Lia-se no título: “Manifestação em memória de jovem morto acaba com apedrejamento e insultos a polícias”. No telejornal da SIC, a notícia não era sequer o ato de protesto, mas o ferimento ligeiro da agente da PSP que alegava ter sido atingida por uma pedra que alguém teria arremessado. O assassinato de Kuku era ignorado por completo, a população indignada era retratada como um bando de desordeiros que não procurava a justiça, mas apenas manifestar-se “em memória” de um “jovem morto”. Assim se encobria, em criminosa conivência, um bárbaro homicídio.
Uma pergunta é incontornável, face a tudo isto. Por que a comunicação social não procurou explorar a dimensão trágica desta história, numa abordagem sensacionalista, como faz tantas vezes? A resposta é simples. Tudo se resume a dois factos decisivos:
Kuku era negro.
Kuku era da classe trabalhadora.
Ora, a vida de um negro pobre não tem qualquer valor para o Estado Português, não é protegida por nenhuma força de segurança, nem é vingada por nenhuma lei quando sofre um ataque – seja qual for a sua gravidade –, porque o capitalismo precisa do racismo e da xenofobia para garantir a manutenção de uma classe de trabalhadoras e trabalhadores de reserva e de baixo custo. É essa a classe que habita os guetos, os bairros sociais e todos os bairros pobres dos subúrbios de Lisboa. Uma classe de emigrantes ou filhos de emigrantes, fácil de estigmatizar, pronta a trabalhar por salários degradantes para sobreviver.
Kuku, devemos recordar, não passa de um entre tantos outros homicídios que a polícia já levou a cabo nas comunidades negras. A impunidade é total quando nós somos as vítimas.
Compreendida esta realidade, uma nova pergunta surge. O que fazer?
O Movimento Alternativa Socialista entende que a única solução é a ação popular e apela à união e à organização a todos os níveis, incluindo o local, em todos os bairros e comunidades. Não podemos esperar nenhum apoio das instituições que compactuam com a violentação sistemática da população negra e da classe trabalhadora, defendendo o racismo e os interesses dos grandes capitalistas que lucram com o suor das trabalhadoras negras e dos trabalhadores negros sofrendo superexploração – quando não no desemprego – e que se encontram em condições de vida cada vez mais miseráveis.
Foi a partir desta estratégia de organização popular que vários jovens, amigos de Kuku, músicos e simpatizantes desta causa organizaram um concerto de solidariedade no passado dia 16 de Novembro, com o objetivo de angariar fundos que cobrissem todos os custos que a família de Kuku enfrenta na sua luta por justiça e sensibilizar o máximo de pessoas para este movimento de solidariedade. A ação não só teve sucesso como demonstrou igualmente o poder que a união confere ao povo! Enquanto isto, também imbuída em semelhante espírito solidário, a advogada a trabalhar neste caso aceitou fazê-lo sem receber honorários.
Apesar de tudo, a árdua luta continua porque, para a classe trabalhadora em Portugal, a justiça é um luxo incomportável. Trabalhadoras ou trabalhadores que pretendam fazer valer os seus direitos vêm-se muitas vezes obrigados a sacrificar horas de trabalho e, como consequência, a perder parte dos curtos salários, quando não a ser prontamente atirados para o desemprego.
De facto, dificilmente se pode dizer que há direitos para quem é pobre. É comum os custos inerentes aos processos judiciais atingirem uma dimensão esmagadora, sendo largamente superiores à totalidade do salário mínimo! Somados a estas despesas, contam-se ainda os gastos indiretos que são multiplicados por todas as implicações do processo judicial e burocrático – viagens ao tribunal, telefonemas, alimentação fora do lar, etc. E, como se tudo isto não bastasse, no final, não há quaisquer garantias de que a justiça seja servida.
Digamo-lo sem reservas: a justiça, no sistema capitalista, é um serviço como qualquer outro – vende-se! Evidentemente, aqueles que são mais fácil e frequentemente injustiçados são precisamente os trabalhadores e as trabalhadoras, por se encontrarem numa situação de fragilidade a todos os níveis, e são precisamente essas as pessoas com menos dinheiro para comprar a justiça que o Estado comercializa.
Face a esta dura realidade e à legítima luta que está em marcha para fazer justiça à memória de Kuku, o MAS manifesta também a sua solidariedade para com a família do jovem, a Plataforma Gueto e todas e todos os que batalham para tornar este caso conhecido e para angariar a avultada quantia que o vergonhoso sistema de justiça exige como pré-requisito para cumprir as suas obrigações.
Todo o poder para o povo!
Ysmail X